Viver é também descansar - 26ª Edição
Como entendi que, para viver mais, era preciso viver menos.
Todo mês de junho, de primeiro a treze, é tempo de conversar sério com Santo Antônio, meu santo de devoção. Agradeço, renovo votos, faço promessa. Neste ano, o pedido era genérico, simples, mas profundo: quero uma folguinha, um paradeiro para descansar e, assim, me sentir mais viva.
Disse isso porque, nos últimos anos tive a sensação ter que constantemente me preparar para apagar algum incêndio, sem conseguir parar para observar, como quem aprecia uma fogueira. Era sossegar e começar algum projeto, que vinha outra coisa que eu precisava dar conta, me meter, batalhar para ter e me fazia parar tudo para lidar com o que era mais urgente e delicado. O fogo descontrolado recebia toda minha atenção, antes que se alastrasse pelos assuntos vizinhos. Algumas vezes, era foguinho pouco, uma jarra de água resolveria, mas o medo do que eu já havia vivenciado me fazia temer qualquer chama, até aquelas necessárias para esquentar, cozinhar, acender uma vela. Um riscar de fósforo já era motivo para acionar o alarme e entrar no modo sobrevivência. Sempre soube que a vida era fogo, mas quando coloquei meu joelho metaforicamente no chão, foi para pedir, pelo menos, uma forma de controlá-lo. Fazer as pazes com um lado mais tranquilo da vida, para que eu não confundisse paz com resignação ou passividade.
Percebi que, por muito tempo, não esteve claro para mim o que eu entendia por “viver de verdade”. Talvez porque, desde muito cedo, escutei que teria poucos anos de vida, por conta da minha deficiência. As previsões não se confirmaram e cá estou, aos 36 anos, com uma saúde considerada acima da média. Esse grande machado pendurado acima da minha cabeça, porém, me fez acreditar que precisava fazer tudo-ao-mesmo-tempo-agora, de maneira que “desse tempo”- sabe-se lá do quê- e assim considerasse minha vida valiosa o suficiente para justificar todo o custo de ser alguém como eu. É um assunto que já tratei por aqui, não retorno a ele, senão para dizer que já não ouço tanto o tic tac do relógio imaginário e isso tem me feito aproveitar mais o tempo, fazendo justamente o contrário do que esperava: deixando o tempo passar.
No fundo, temia que, ao fazer isso, cairia na lógica de “café-com-leite” imposta a pessoas com deficiência. É comum que a sociedade espere pouquíssimo de nós, ao mesmo tempo que qualquer coisa que fazemos, conquistamos, é visto como uma superação. Para evitar ser vista como café-com-leite naveguei por muitas coisas desejando me sentir boa demais, mas quase sempre não entregando muito. Não me conectava com boa parte das escolhas que fiz, na real, mas me arrisquei a fazer porque pensava que era onde eu teria alguma oportunidade de me afirmar. A sensação de afirmação, no entanto, nunca vinha. Sentia que, para muitos, qualquer feito medíocre eu estava bom, “tadinha, tanto esforço”. Quando muitas vezes, nem era tão difícil assim.
Parece paradoxal e é mesmo. Capaz de dar nó na cabeça de qualquer um. Constantemente me via precisando dizer que fazia muita coisa, que colecionava funções, que dava duro, que batalhava. Estava sempre cansada e ocupada para combinar com a narrativa de lutadora que me impuseram. Ao mesmo tempo em que me cercava de dúvidas sobre se o que fazia era de fato suficiente, importante.
No último feriado, vi o sorriso de um dos meus amigos mais queridos surgir no seu rosto quando uma outra amiga, que tinha acabado de conhecê-lo, disse que o achou tão “vivo”. Sei que ele, por muito tempo, lutou contra um certo desconforto em viver, tentando achar seu lugar no mundo. O que o faz duvidar que as coisas que ele produz tem uma força enorme. Foi então que percebi que mesmo as pessoas que mais “vivem” que eu conheço tem essa necessidade de achar o relatório de avaliação final dos seus feitos, para ter certeza se o que faz é engano ou real vitória. Não acontecia só comigo, que tenho deficiência, essa sensação de não estar vivendo tudo que pode, ainda que esteja vivo para caramba.
As pessoas que fazem parte de alguma minoria, especialmente, são empurradas para um estado de vigilância constante sobre se estão preenchendo os requisitos esperados para sua idade, status ou estado civil. São cutucadas sempre para que mostrem o que tem superado, de que forma tem dado certo mesmo com as dificuldades, de que forma sentem que suas vivências são inspiradoras e revolucionárias para os que vierem depois. E enquanto equilibramos as muitas demandas externas e lutamos contra a condescendência de quem nos acha inferior, temos pouco tempo para fazer o exercício árduo e solitário de se perguntar o que de fato queremos da vida. Não aquilo que é esperado, celebrado ou ignorado pelo outro.
Fazer o que o outro quer, no lugar do que queremos, não deixa de ser, muitas vezes, uma maneira de fugir de uma reflexão, de um comprometimento com nós mesmos. Passamos a agir no automático, só respondendo a essas indagações, até como forma de se sentir incluído, bem visto. É preciso um pouco de coragem para praticar essa análise mais interna, sem tanta aprovação alheia. Muitas vezes, os efeitos das nossas decisões só serão vistos na prática, não dá para saber antes, na teoria. Entender como nos sentimos com cada ação, muito frequentemente, só aparece quando de fato praticamos. Não há garantia que a satisfação conosco irá perdurar no tempo, que corre em seu ritmo, sem se preocupar se estamos confortáveis seguindo seu fluxo.
A fórmula que achei para melhor sistematizar esse mergulho nas minhas vontades e preservá-las das expectativas alheias é simples. Escrevo com bastante dedicação uma lista de resoluções para o ano novo. Não é apenas uma lista com tópicos, me dedico em esmiuçar cada vontade. Começo cedo, já no final de outubro. Não quero que engarrafe com o desespero típico do fim do ano, muito menos com a ilusão de um futuro novinho em folha, que a virada do ano traz. Enquanto ainda tenho fôlego, preparo um email e vou escrevendo, livremente, sobre o que fiz esse ano e gostei e o que eu acho que preferiria mudar no futuro.
Não há muitas regras, além da sinceridade comigo mesma e do sigilo. No começo, enviava para uma amiga, apenas para criarmos o hábito. Atualmente, escrevo no máximo de silêncio possível, tentando escutar o que sinto ao tocar em cada ponto, abafando a tão insistente voz do “o que os outros vão pensar?”. Vou e volto por muitos dias neste rascunho, nada é feito de vez. Leio e releio minhas metas e minhas confissões. Mexo em tudo até o dia 31 de dezembro, quando envio para mim mesma e guardo. Gosto de consultar o que escrevi no decorrer do ano e perceber o que se manteve como preocupação urgente urgentíssima, e o que virou poeira frente a fatos novos que a vida sempre trará.
E foi assim que fui descobrindo onde gostava de canalizar minha energia e por onde ela me escapava. O que ignorei e me fez bem. O que priorizei, mesmo me fazendo mal. Não é mágico, ainda erro, volto, mas considero um exercício saudável. Longe de ser uma auto-cobrança, foi uma ferramenta para entender que os anos em que eu desejei menos, eu alcancei mais. Acho que muita energia se perdeu quando performei uma existência lutadora e desejante, enquanto na realidade estava cansada e traumatizada demais para querer tanta coisa. Ou ainda, que o desejo nasce também do espaço que se abre para a criatividade, quando não precisamos fazer malabarismos para encaixar 10 tipos diferentes de função que nos impõem. Ou pior ainda, achar que estamos nos exigindo tudo isso por alguém, quando na realidade ninguém está prestando atenção, é só uma vontade nossa, enterrada, de parecer melhor que os outros, mais produtivo, mais adequado porque aprendemos que o nosso valor está em parecer sempre muito desgastado e batalhador.
Ao tentar deixar a minha vida menos cheia de enfeites, projetos e atividades, sinto que reservei um terreno vazio no qual pude plantar muita coisa. No lugar de capinar sol a sol para que vizinhos passassem e me vissem trabalhando, preferi me concentrar em entender quais seriam as sementes certas para meu solo, meu clima, minha estação e, assim, ter o que fosse necessário para semear, quando chegasse a hora. Estive mais presente nas coisas que já sou e tenho, me dediquei com mais avidez àqueles que se fazem presentes, no lugar de estar sempre preocupada em criar novos hábitos, novas metas, novas conexões. O trabalho que é feito na terra que já possuímos é mais urgente do que a expansão para novos terrenos que sequer sabemos se são férteis. Sei que floresço quando estou me sentindo contemplada, incluída nos espaços. Estou viva quando estou consciente das coisas que possuo e o que eu posso fazer com elas, no lugar de estar com olhos na falta, no que ainda não conquistei.
Se concentrar em construir esse lugar que nos cabe, às vezes, parece pouca, tarefinha boba. Num mundo em que estamos constantemente expostos ao pantone de verdes das gramas vizinhas, fica fácil nos convencer que cuidar apenas do que temos no nosso dia a dia é insuficiente. Como se precisássemos estar de olho no que vem mais à frente, que a vida sem sacrifícios, lutas e competições é uma vida vazia, abaixo do rendimento. Com isso, nos transformamos em pessoas exauridas, que depois precisam negociar mil soluções para um descanso. Quando somos empurrados por caminhos que nem queríamos estar trilhando, nos distanciamos da construção do lugar que poderíamos entender enquanto lar, se ficássemos parados tempo suficiente para saber onde nos cabe. Nem que seja só uma parada, ora, como o posto de gasolina que me referi na edição anterior. Ao confundir viver com lutar, arriscamos nos sentir deslocados quando a vida parece bem mais terna e palatável. Como se repousar fosse inadequado, e não essencial para nos manter vivos e não apenas sobrevivendo, esperando a próxima batalha.
As ilustrações que estão nessa edição são da artista Tatá Noel, mulher com deficiência aqui de Salvador, de quem me tornei grande amiga e consigo dividir muitas ideias, sonhos e risadas. A arte de Tatá Noel me traz uma sensação de paz e movimento que tem muito a ver com o texto acima. Espero que tenham gostado e até a próxima!
Compartilho sua necessidade de desacelerar, de parar de apagar incêndios o tempo todo. Ótimo texto! Por uma vida com mais momentos de silêncio e contemplação.
"Ao confundir viver com lutar, arriscamos nos sentir deslocados quando a vida parece bem mais terna e palatável. Como se repousar fosse inadequado, e não essencial para nos manter vivos e não apenas sobrevivendo, esperando a próxima batalha. "
Perfeito, Mila!
Acho que eu parei de lutar com a necessidade de me provar após a morte do meu pai. Tanta coisa mudou de lá pra cá, inclusive a percepção de que essa ânsia de tentar fazer tudo, vencer muitas batalhas, estar sempre a procura do que mais dá pra encaixar no tempo, é vazia de significado. Seu texto falou muito comigo, é muito do que eu ando pensando sobre como eu quero que seja a minha experiência no mundo.