Onde fica o posto de gasolina? - 25ª Edição
Minha experiência na Flipelô e os percalços de ser uma pessoa com deficiência buscando inspiração.
Lá estava eu numa sala de espera, prestes a fazer algo importante, quando tocou uma das minhas músicas preferidas. Até então, estava me perguntando se o caminho que eu tinha escolhido era o correto, e a canção significou um “sim, pode seguir”. Ultimamente, recorro a esses sinais para ter alguma pista sobre se sei ao certo o que fazer. Nunca tive a ilusão de que aos 36 anos fosse ficar mais claro, convivi com gente de toda idade e vi que, uma vez aprendida as regras do jogo, mudam-se as regras, começa tudo de novo, indefinidamente. O jeito de caminhar meio trôpego, errante, se impõe e seguimos assim mesmo, em direção ao que escolhemos lá atrás. Mas, como se não bastassem os perigos da estrada em si, o que anda me preocupando mesmo é aquilo que resolvi chamar de “postos de gasolina” da vida.
Normalmente, um posto de gasolina é um lugar por onde passamos sempre que precisamos fazer qualquer viagem de carro. Calibrar pneus, checar itens, encher o tanque, colocar água. Outros meios de transporte tem seus postos de gasolina equivalentes, os responsáveis precisam prestar atenção nesses itens antes de começar a se movimentar. Até se a viagem a ser feita for de jegue, há que se preocupar se o bicho está devidamente alimentado e disposto. Sem essa parada obrigatória, não se vai muito longe.
No caminhar pela vida, tenho observado, não é diferente. A cada grande movimento que sentimos a necessidade de fazer, essa pausa se impõe. O que dá esse start de movimento, essa necessidade de sair de um ponto ao outro nem sempre vem fácil, evidente. A inquietação vem das coisas que nos inspiram, os desconfortos, as mudanças ao redor. O momento que entendemos “ok, não é mais isso que eu quero, vou partir daqui”, nasce dos sentimentos que nos permitimos acessar, depois de ter arriscado olhar para eles. E é essa preparação que fazemos, ainda envolta nas descobertas recentes que fizemos sobre nós mesmos, que chamo de posto de gasolina. O ponto da vida em que nos preparamos para tomar qualquer rumo. Quando encaramos tudo aquilo que nos carrega pela vida, e checamos em que condições está aquilo que nos move.
Por muito tempo, achei que sair do lugar era o mais importante e me esqueci dessa fase “posto de gasolina”. Em que esperamos estar preparados para o que vier pela frente na estrada que escolhemos. Vai chover ou vai estar um céu bonito até lá? Terá um buraco na estrada ou ela está lisinha, pedagiada. O pedágio, quanto será? Quantos quilômetros conseguimos rodar até o próximo posto? É uma fase meio desagradável, onde não se pode esperar grandes coisas. É natural que seja assim. Num posto de gasolina dificilmente vai vender a comida mais gostosa, nem ter a bebida mais gelada, a vista mais bonita, o atendimento mais cativante. Ele é um posto, feito para que estejamos prontos para seguir viagem: beber se tiver com sede, comer se tiver fome. Uma parada no caminho com destino ao local onde se deseja estar. Lá sim, é onde mora (esperamos) o que há de mais bonito, a comida mais gostosa, o coração mais cheio de amor para dar.
Pessoalmente, o que mais dificulta minha boa relação com essa fase da vida é a dificuldade de definir o que é estrada de verdade e o que é posto de gasolina. Enquanto na vida real os postos geralmente são bem sinalizados, placas anunciam quilômetros antes e da entrada já dá para saber quanto custa o combustível, é pegar ou largar. Quando estacionamos, as paredes das lojas de conveniência geralmente são de vidro, servindo não só como uma espécie de convite, mas também para alertar que não é para esperar muito dali, só tem o que está exposto, dá para ver de fora todo o interior da loja. E ficamos bem com as opções dadas, afinal, de novo, não foi pelo posto de gasolina que iniciamos aquela viagem, nem vai ser por ele que vamos retornar, um dia, para aquele ponto. Porque é quase certo que voltaremos, apesar do possível trauma da viagem anterior.
Dentro da gente, no entanto, definir essa fase é complicado, aparece como um borrão. Enquanto somos demandados a escolher quais sonhos são mais urgentes e merecem mais nossa atenção, tudo vai acontecendo. É difícil definir com o que precisamos passar mais tempo para estar pronto para o que vem pela frente e o que só é um peso desnecessário, que pode atrapalhar nosso senso de autovalor. É uma fase em que pouca coisa acontece, apesar do agito cotidiano, mas importantíssima. É também onde precisamos nos cercar de referências, de cuidado, saber o que nos abastece, o que nos calibra para absorver os impactos, o que nos alinha e balanceia.
E eu devo adicionar mais um item na complexidade dessa fase preparatória para qualquer grande viagem que fazemos: alguns de nós não sabe como funcionam as estradas para os veículos que temos à mão. Eu, na cadeira de rodas por exemplo, onde será que consigo chegar? O que é possível sonhar? Onde mora meu aconchego, onde serei bem recebida, onde acharei pouso? Nessa fase em que estou, meio indefinida, mas com o objetivo de chegar num lugar onde eu me veja escritora, me peguei pensando que os lugares que servem de postos de gasolina para pessoas sem deficiência nem sempre vão servir para mim.
Os lugares que nos preparam para seguir são aqueles que nos inspiram, que nos abrem janelas para vislumbrar onde dá para ir, o que está no nosso horizonte, imaginar o que está além. Quando se tem uma deficiência, no entanto, muitas dessas janelas estão fechadas, ou num patamar mais alto, onde não alcançamos, onde só dá para ver uma frestinha. Um lugar que poderia servir de local de abastecimento, pode ser onde furo o pneu, onde quebro meu limpador de para-brisa.
Esses dias senti isso na Flipelô, a Feira Literária do Pelourinho, aqui em Salvador. Tenho vontade de ir há anos, estou sempre de olho na programação, ficava sempre curiosa de participar. Dessa vez, não podia faltar. Sei que o Pelourinho tem seus desafios de acessibilidade, mas alguns dos lugares onde aconteciam os eventos eram acessíveis e eu resolvi insistir em perguntar. Este é um movimento cansativo e bem conhecido de quem tem deficiência. Para a maioria de nós, em nenhum programa você pode simplesmente brotar, tem que saber antes como é, onde vai ser mesmo, quais as condições de acessibilidade. E, muito embora tenham me dito que havia uma comissão de inclusão e acessibilidade, eu simplesmente não conseguia resposta dos organizadores nos canais de comunicação disponíveis e nas redes sociais.
Eu insisti, afinal, sinto que é preciso estar mais nesses lugares, forçar a nossa presença. É a possibilidade de colocar qualquer 50 conto de gasolina para seguir esse caminho aí de escritora, sentir o clima, me envolver com a literatura da minha terra. Contei com a ajuda dos meus amigos com deficiência, especialmente Tata Noel, essa artista defiça incansável e descolamos o contato da responsável pela acessibilidade. Ao mesmo tempo, descobri que meu amigo, também com deficiência, Tiago Correia ia participar de uma mesa e apresentar seu livro “Cuidado com quem te ama”. Aí que pensei que precisava estar lá mesmo.
Ameaçava chover, o pesadelo de quem usa cadeira motorizada, mas lá estava eu. Muito feliz por, finalmente, desfrutar da Flipelô. Mas o que eu vivi lá ainda oscila entre algo que me impulsiona e me desmotiva a seguir viagem. A mesa onde Tiago ia falar, junto com a também escritora com deficiência Glady Maria, tinha como tema “Escritores e sua diversidade literária” aconteceu na Fundação Casa de Jorge Amado, local onde normalmente consigo chegar pela rota acessível, a partir do Cruzeiro de São Francisco. Foi muito bom estar ali escutando-os, suas vozes tão importantes. Mas alguns detalhes, tão recorrentes, ainda funcionam como um desmotivador da minha presença.
Primeiro, a dificuldade de saber se haveria de fato acessibilidade, que eu mencionei acima. Depois, chegando lá, vi Glady sendo carregada por três degraus para se posicionar na mesa onde ia falar. Pelo que fui informada depois, houve um mal entendido sobre como se daria o acesso dela, o espaço tinha acesso mas não sabiam. Ainda que ela não tenha se importado, não sei ao certo, mas a mim, particularmente, incomodou o fato de carregar ser a primeira resposta pensada por pessoas sem deficiência quando há uma dificuldade no acesso. Carregam mas dificilmente se perguntam onde está a falha que permitiu que uma mesa com uma pessoa com deficiência fosse feita num local sem acessibilidade. Afinal, a acessibilidade existia e deveria ser de conhecimento de todos que estavam lá trabalhando, porque não é algo de segunda importância, é simplesmente o meio pelo qual nossa presença é possível.
Outro ponto que também dificulta que eu veja a Flipelô como um espaço que funcione para me inspirar é o fato de que as pessoas com deficiência estavam ali numa mesa para falar especificamente sobre o assunto deficiência, inclusão e acessibilidade. Não as vi incluídas em outras mesas, realizando outras discussões que não tivessem necessariamente a ver com o assunto. O ideal, para mim, seria que estivessem exercendo seu direito de falar sobre outras coisas, mostrar seus talentos, o que lhes inspira e de que feita sua escrita. Como se inclusão e acessibilidade fosse um cercadinho, não algo que deveria atravessar toda a programação.
Inclusive, para mim pareceu que foi assim que acessibilidade foi vista pelos organizadores do evento. Havia até um local denominado de “Espaço Acessibilidade”, que eu fiz questão de ir conhecer, localizado no Terreiro de Jesus. Era um toldo montado lá, onde estava um pessoal muito querido da ABADEF quando visitei, mas que não servia a função que eu, ingenuamente, achei que teria para a feira: trazer acessibilidade para aqueles que quisessem acessar os eventos, maiores informações sobre quais locais seria possível acessar e, quem sabe até, promover essa discussão. Se eventos como a Flipelô movimentam todo o “ecossistema” do Pelourinho, traz outras opções de transporte, mais policiamento, exposições a céu aberto, por que não pensar em formas de dinamizar também a busca pela acessibilidade do Pelourinho? Se concordamos que a falta de acessibilidade de lá é um problema, por que não utilizar do poder que a Feira atrai, inclusive com dinheiro público envolvido, para justamente pensar soluções de acessibilidade que não só funcionem durante o evento, mas que fiquem de legado para aquele espaço, tão importante para nossa cidade?
Entrar em contato com essa falta de cuidado sobre acessibilidade nos eventos que ocorrem em Salvador é sempre muito frustrante. Ainda que a Flipelô tenha uma coordenação responsável por isso, ver que as coisas funcionam como uma adaptação e não como uma ideia que permeia as escolhas do evento, no geral, é pensar que a deficiência provavelmente vai ser tratada assim sempre: como algo que precisa se pensar como resolver depois, do jeito que der, não algo que faz parte da existência humana e que, por isso, precisa ser levada em consideração cada vez que se desenha um evento como esse.
Ao final, percebo que, apesar dessas frustrações, saí da Flipelô mais cheia de gás para seguir viagem pela literatura. E o principal responsável por isso foi meu amigo com deficiência Tiago Correia que tão bravamente fez um discurso que me tocou bastante, aconselho fortemente que leiam clicando aqui. Eu gostaria que mais pessoas tivessem a oportunidade que tive em ver Tiago ali e o tanto que isso significa. Presenciar tanto ele quanto Gladys Maria lançando seus livros me fez ver que, sim, meus postos de gasolina podem não ser os mesmos que os das outras pessoas. Mas seguirei com a luz da reserva acesa até encontrar, assim como eles encontraram, o que me levará a terminar essa jornada rumo a uma vida com mais literatura defiça.
Que metáfora incrível, Mila. Adorei a ideia de posto de gasolina pra esse momento de para e reavaliação de rota. Às vezes o posto - o real - serve pra isso também, né, pra consultar o GPS e reavaliar o caminho.
Eu sinto que mais uma vez um evento não tenha sido acessível e inclusive, não só pra você como pra todo mundo que precisava. Fico pensando se isso não é falta de ter pessoas com deficiência na organização. Como sempre, a ausência de diversidade nas organizações fazendo toda a diferença no final
Essa é uma imagem que vai ficar comigo, a ideia de postos de gasolina como essas paradas obrigatórias que temos que fazer ao longo da nossa caminhada. Obrigada! Lindo texto.