O que se faz com dor
O que eu e Luigi Mangione temos em comum além do talento para sair bem em fotos.
O assunto mais comentado por onde estive, nas últimas semanas, foi Luigi Mangione, o mocinho de família rica que pipocou o CEO da maior empresa de planos de saúde dos Estados Unidos. Um assassinato de um bilionário assim em plena luz do dia já daria naturalmente o que falar, mas quando o procurado era um rapaz charmoso, então, a internet parou. Para variar, investigaram bastante sua vida, descobriram que era de uma família rica, estudou numa universidade de elite, trabalhava com tecnologia e a mais notável de todas as informações: era extremamente fotogênico. Toda hora uma nova ruma de foto de Luigi circula pela internet e quem não suspira é maluco, não importa se esteja do lado dele ou do bilionário. Uma das imagens relacionada ao rapaz, no entanto, chamou minha atenção. No cabeçalho de uma de suas redes sociais ele expõe uma radiografia que mostra três parafusos na região lombar de sua coluna. Até brinquei no bluesky que era assim mesmo, quem tem parafuso na coluna é gostoso, eu mesma tenho 26.
Pelo que deu para apurar, os parafusos estão provavelmente relacionados com um procedimento médico que não foi bem sucedido e fez com que Luigi passasse a ter dores crônicas. Sem muita ajuda do seu plano de saúde, que pertence ao CEO atingido, Luigi tenta manejar as crises. O rapaz bonito, rico e inteligente se deparou com uma realidade que a maioria pensa estar distante demais de si: ter seu corpo sofrendo com alguma condição de saúde e as consequências de não ter acesso a um tratamento digno para lidar com a nova realidade. Pessoas que sentem dores crônicas existem aos montes por aí, vivendo suas vidas fazendo coisas ordinárias, como escrever uma newsletter, ou extraordinárias como o que Luigi fez recentemente num outono em Nova Iorque. Quando resolveu disparar aquela arma e, consequentemente, incendiar o debate sobre as políticas de acesso à saúde nos Estados Unidos, Luigi pretendia ser escutado em instâncias que não estava tendo sucesso até então.
Assim como Luigi, sinto dores quase diariamente. Provavelmente não na mesma intensidade, nem são fruto de algum erro médico, mas estão aqui comigo sempre, em maior ou menor grau. As minhas têm a ver, resumidamente, com minha postura e fraqueza muscular e os últimos dias têm sido especialmente complicados. Inicio a escrita desse texto, por exemplo, numa segunda-feira pós um fim de semana maravilhoso, na casa de praia junto com uma amiga, meus cachorros, sol e piscina, porém com um detalhe: dores escrotas pelo corpo. Meu pescoço até deu umas vaciladas na hora de segurar minha cabeça em certas posições, de tão tenso que estava. Quadris e pernas queimando, agulhadas quando mudo de posição. Dormir foi menos pior, pois um remedinho que tomo continuamente ajuda nessa hora. Estou terminando o texto dias depois, tendo despejado de pouquinho em pouquinho a energia que tinha, de maneira que não deixasse de tocar no assunto, nem piorasse justamente por estar tratando dele.
Lembro da primeira vez que me dei conta de que dor é um negócio que cola na gente e vai modificando tudo. Não pensava muito nisso, ia para minha fisioterapia aquática desde muito novinha e para mim era mais divertido do que qualquer outra coisa. Era uma época em que eu não sentia nada, apenas não andava. Na clínica conheci uma senhora chamada Conceição, que falava pelos cotovelos. Era engraçada, simpática, tinha olhos vivos e expressivos que, eventualmente, se cercavam de rugas que comunicavam que algo não estava bem. Em dias assim, Conceição ficava murcha, quieta. Mesmo nos dias bons, era comum parar de contar suas histórias e ficar lívida, enquanto o seu fisioterapeuta manuseava alguma de suas articulações. Muito tempo depois, soube que era uma condição que pouco se falava na época, a fibromialgia, que causa dores fortes pelo corpo, sem causa definida. Com o passar dos anos eu fui experimentando aos poucos o lugar de Conceição, por conta da evolução da minha amiotrofia, e assim entendi o que significava suas caretas. Basicamente, fisioterapia costuma nos fazer sentir alguma dor, para ver se impede que sinta tanta, a toda hora. E isso me ensinou que a dor que eventualmente nos cabe nem sempre poderá servir de motivo para nos deixar abrir mão daquilo que nos garantirá um pouco de sossego, em algum momento. É preciso muita motivação para fazer aquilo que fará eu me sentir melhor, ainda que o processo seja muito doloroso e extenuante. E nunca é uma garantia 100%, às vezes vou em direção daquilo que não necessariamente melhora, só pela promessa de que não irá piorar.
A dor não tem uma cara só. Nem todo mundo lida da mesma forma, existem intensidades e contextos diferentes, só se sabe que pode estar por toda parte, a qualquer hora. Pessoas fazem coisas enormes enquanto seus corpos estão doendo. Dias depois de ter me encantado pelas atuações no filme Ainda Estou Aqui passei por um post de Selton Mello falando como passou boa parte dos ensaios e filmagens se recuperando de uma lesão no ombro e de uma fratura no punho. Uma queda de bicicleta dentro de sua garagem o fez atravessar um dos momentos marcantes de sua carreira, um filme que caminha para o Oscar, carregando algo que, eu queria dizer que não, mas nos transforma. Seja pelos dias que passamos sentindo a dor de fato, ou quando alivia e experimentamos o medo de voltar a senti-la. Em sua postagem, Selton mistura as dores físicas e emocionais que sentiu durante o período, do jeito que elas vem, misturadas, confundindo-se. Não dá para traçar uma linha onde uma pega só o corpo e a outra só a mente.
Nos dias mais difíceis, peço compaixão para mim mesma. É muito difícil não se achar um saquinho de desculpas ambulante, que se nega a fazer coisas, tomar atitudes, priorizar tarefas simplesmente porque algo te puxa sempre para um nível abaixo do que está. Por melhores que sejam os seus dias, se a dor pintar, as cores do mundo ficam mais fracas. E é bem comum que passe despercebida para os que nos cercam, especialmente quando se tem uma grande resistência à dor, como eu tenho. Minha cara não muda muito, o humor oscila só para os mais sensíveis e as tarefas, que já são previamente programadas para serem menores do que são, pela minha condição, diminuem sem muito alarde.
Se não saímos por aí com a cara de quem acabou de tomar uma martelada no dedo, parece que não estamos sendo claros o suficiente sobre o que nos aflige. E por mais que a intensidade não seja tão alta, a frequência é o bastante para nos colocar num eterno estado de alerta, se observando o tempo todo para saber se estamos dormindo bem, comendo, nossa postura e, principalmente, como nos sentimos. É como se nós configurássemos muitos alarmes que não nos deixam ter uma soneca revigorante, alarmes que nos lembram que tem algo de errado com nossos corpos. Um despertador que, por mais que o entorno se preocupe, só é escutado por nós mesmos. Aquela solidão de acordar na casa de algum amiguinho, quando criança, e estar todo mundo ainda dormindo.
Queria terminar esse texto com alguma frase motivacional dizendo que a dor também traz muitas coisas, mas só o que se aprende é a lidar com ela. Não se fica melhor, mais bonito, mais forte. O que faz o ser humano mais próximo de si próprio é viver plenamente o que pode, com o corpo que se tem e com a ajuda de terapias, remédios, descanso, tecnologias. Ajuda muito se ninguém passar na frente impedindo de ter acesso a isso aí, já basta o freio imposto por tudo aquilo que dói aqui dentro.
Acho que a dor também me fez sentir empatia imediata pelo Luigi (mesmo que no fim nem tenha sido ele, sei lá).
Antes do meu diagnóstico de fibro eu fiquei tão péssima, tinha tanto ódio, pensei em divórcio várias vezes porque tudo me irritava.
Com o diagnóstico eu tive acesso à medicação correta e a uma resposta, e mesmo nos dias de muita dor (como têm sido esses últimos) eu sei o que fazer e sei o que esperar.
Eu li em um livro que eu não lembro mais que a jornada da heroína (nesse caso com dor crônica) é como a de Perséfone, às vezes tá bem na superfície, às vezes tá reclusa no Hades.
Eu espero que a gente fique melhor, e que você tenha muitos dias bons pra mostrar todos os seus biquinis.
Esse texto domingo de manhã foi ao mesmo tempo um abraço e um soco no estômago. Eu também convivo com dores causadas pela minha doença, e sinceramente é só horrível e solitário, tem nenhuma lição motivacional besta para se aprender com isso, é como você disse: o que a gente aprende é a lidar com ela.