Essa edição faz parte de uma brincadeira fofa, criada por
, lá no grupo de newsletters que participo: um amigo secreto de edições de newsletters. A pessoa sorteada para inspirar essa edição foi , que escreve a caprichadíssima “Querido Clássico”, uma newsletter sobre arte e clássicos. Para quem não conhece, recomendo demais, pode ir começando pela edição de número 7 - “O tempo e a semana”, que inspirou esse meu texto e foi por onde comecei a mergulhar no mundo maravilhoso de Mia e suas referências riquíssimas. Menção honrosa para minha edição preferida, sobre Eros e a escrita.Querida Mia,
Você não sabe, mas quando fui convidada para fazer parte do evento sobre newsletter “O Texto e o Tempo”, achei que a escolha do meu nome se tratava de um engano. Eu já tinha mais de dois anos que escrevia periodicamente, e sei lá quanto tempo que escrevia pela internet, mas achei que meu nome, Mila, tinha sido confundido com o seu, que também estaria participando da mesa. Mandei um email para
perguntando se não tinha se enganado ao fazer o convite, porque não achava que minha newsletter tinha lá essa importância toda para estar num evento como aquele.Quando os Deuses da internet sacudiram os papeizinhos com os nomes dos escritores e seu nome foi sorteado, dei um sorriso. Era uma forma de, ao mesmo tempo, homenagear sua escrita, que admiro desde que nos conhecemos no evento, e me lembrar desse questionamento que fiz a mim mesma, lá atrás.
Lembro que minha dúvida sobre se deveria estar ou não no evento não tinha tanto a ver com números de leitores ou com a minha capacidade de escrever, mas sim com o fato de estar com uma newsletter havia tão pouco tempo, aos meus olhos. É que eu tenho uma questão com o tempo, sabe?
Num dos seus textos belíssimos, na edição de número 7, “O tempo e a semana”, você diz que desde a pandemia sente uma distorção no tempo “como se estivesse dentro de uma bolha, flutuando no espaço, na qual o tempo passa e não passa concomitante - tudo está em estase, embora exista e siga e mude.” E eu senti ali que é bastante parecido com a relação que tenho com o tempo desde muito cedo e que a pandemia só escancarou. Algumas coisas parecem urgentes, outras demoram um tempo maior do que a média para outras pessoas.
Muitas pessoas relatam uma mudança drástica na sua relação com a passagem dos anos desde 2020, uma dificuldade em digerir como pode já ter mais de 3 anos que tudo começou. Acredito que esse não compreender os anos transcorridos tem a ver com a humanidade ter tido uma pequena amostra de como nós, pessoas com deficiência, nos relacionamos com o relógio.
Nos estudos da deficiência, chamamos de “crip time” ou “o tempo dos aleijados”, em tradução livre, essa relação diferenciada que pessoas com deficiência tem com o tempo. Isso acontece por muitas razões. Nosso corpo exige mais de nós, portanto, precisamos descansar, desacelerar o ritmo com certa frequência. Alguns de nós colecionam visitas a médicos, terapias, adaptações para dar conta dos afazeres. As acomodações de acessibilidade muitas vezes nos atrasam, elevadores quebram, cadeiras furam pneus, carros de aplicativo cancelam ao saber que vão transportar alguém com deficiência. Calculamos a hora que vamos precisar de ajuda, se a bexiga dá conta até lá, se conseguimos umas horinhas a sós, se dá para dormir mais cinco minutos e outros pequenos cálculos que quase parecem instintivos. Nossos quereres e vontades, muito frequentemente, estão ligados aos de outras pessoas, especialmente nossos cuidadores, e isso demanda uma mediação e uma espera que não nos pertence, mas que fazemos um esforço para dominar tanto quanto for possível.
Quando você, Mia, trouxe essa noção da distorção do tempo e a ótima referência ao livro de Thomas Mann, e seu livro onde os personagens esperam na montanha seu destino chegar, eu me recordei do quanto quis mostrar as pessoas, lá no começo da pandemia, que aquela experiência que estávamos vivenciando tinha muitas similaridades com a vida de pessoas com deficiência. Já não podíamos sair quando queríamos, os estabelecimentos estavam fechados, como alguns são para nós, sempre. A vida social migrou fortemente pro modo online, onde muitos de nós já éramos acostumados a fazer amigos, encontrar nossa turma para trocar experiências sobre coisas que vivenciamos, até porque, muitas vezes, somos os primeiros ou os únicos a experienciar a deficiência dentro de nossas famílias e comunidades.
Quando algumas pessoas afirmam sentir que não viveram de verdade durante esses anos de pandemia, sinto a dificuldade que há em se perceber vivendo durante os tempos de espera, de desaceleração. Quando não conseguimos controlar o tempo da forma como foi nos ensinado, tão inocentemente, não quer dizer que ele esteja sendo desperdiçado, inútil. A vida que nos percorreu durante aquele período, mesmo com a sombra do medo, da morte, de vários tipos de isolamento, foi vivida e merece ser vista em sua amplitude.
A sensação de bolha que a pandemia e os anos que se seguiram causaram, a meu ver, está muito ligada a essa noção de tempo tão disruptiva que o “crip time” me ensina há anos, antes mesmo que eu soubesse que existe um nome para isso. A ideia de que o tempo do mundo não necessariamente é o nosso, que não o controlamos sempre da mesma forma, que é preciso ver o que cada unidade de tempo significa para cada indivíduo. Quando vejo alguns grisalhos no meu cabelo, as rugas no meu rosto, sinto uma alegria genuína por ter tido a oportunidade de viver o suficiente para presenciar essas mudanças. Por muito tempo, vivi com o freio de mão puxado achando que tinha pouco tempo de vida e qualquer movimento que eu fizesse teria que ser muito preciso e definitivo. Ignorava, assim, que as coisas acontecem independente do que estamos planejando minuto a minuto. Envelhecemos, aprendemos e nos adaptamos até quando fingimos que só estamos esperando a melhor hora de fazer o que quer que seja.
Enquanto eu esperava o momento de poder me considerar uma escritora, eu escrevia newsletters, que me levaram a alcançar pessoas, como você, Mia. Eu não sabia onde o tempo estava me levando, achava que a soma de algumas edições, os dias transcorridos, me daria finalmente essa licença para me afirmar como tal. Só que, como a noção de crip time me ensinou, a passagem do tempo acontece de maneira única para cada um de nós. Alguns demoram mais para fazer algo que outros, alguns alcançam seus objetivos quase instantaneamente, e isso vai transformar a maneira como enxergam seus feitos. E só saberemos o que de fato significou aquele tempo transcorrido depois, quando já passou.
Finalizo essa cartinha dizendo que, hoje, estou agradecida por ter tomado o tempo necessário nesse 2023 para escrever as poucas edições que consegui. Já não questiono se escrevo quando demoro demais, apesar de ter sido difícil aplicar essa noção que meu tempo é diferenciado numa coisa que eu achava que dependia só de mim e, portanto, poderia dar conta quando bem entendesse. Espero que em 2024 eu, você e todos os nossos leitores possamos compreender melhor nossa relação com o tempo sem aprisioná-lo, afinal, ele gosta tanto de correr livre. Que saibamos flutuar como uma bolha ou descansar como uma montanha por onde o tempo passa e nos modifica sem que percebamos.
Um 2024 cheio de realizações e sorrisos para nós.
Até a próxima!
P.S: As fotos são de Chicó, meu cachorro, no dia que chegou aqui, aos 2 meses e agora, para ilustrar a passagem do tempo de um jeito delicioso: vendo um filhote de cachorro crescer.
amei essa carta de um tanto!
Que texto bonito. Estou tentando me reconciliar com o tempo, com essa sensação de que ele me escapa, de que eu “perco” ele. Espero conseguir num tempo vindouro ser como uma bolha ou uma montanha.
Um beijo e bom 2024 :)