A Concha não é nossa. - 24ª Edição
Como a polêmica sobre a Concha Acústica de Salvador ilustra o pensamento do público geral sobre acessibilidade.
Essa edição saiu como um desabafo depois da experiência que tive na Concha Acústica, um lugar que eu sempre tive um grande carinho, mas que tem sido motivo de decepção. Andei sumida, mas tenho algumas edições aí para sair, não desistam de mim e gostaria muito de ouvir as opiniões sobre a polêmica da Concha, ainda que seja para discordar de mim. Um abraço e até a próxima.
Uns meses atrás, uma polêmica tomou conta de um tradicional espaço cultural de Salvador, a Concha Acústica do Teatro Castro Alves: “Qual é o modo certo de assistir um show na Concha: sentado ou em pé?”. Para quem não conhece, a Concha é uma arena aberta, com o palco na parte inferior, e o público fica na arquibancada, uma enorme escadaria curva, fazendo com que o local tenha o formato de uma Concha. Os artistas elogiam muito pela proximidade que dá para ter com a plateia e é comum escutar que ali é um dos locais preferidos para se apresentar no Brasil. Ultimamente, no entanto, a Concha se tornou um local de disputa.
Em janeiro deste ano, o telhado do Teatro Castro Alves pegou fogo e alguns de seus espetáculos foram transferidos para a Concha. Algumas pessoas dizem que nasceu daí a polêmica sobre se o jeito “certo” de assistir um show lá é sentado ou em pé. Até então, o público que frequentava o teatro, fechado, climatizado, com cadeiras, teve que migrar para a Concha, um local feito de escadas e aberto. Eu, no entanto, tenho outras opiniões sobre a origem dessa discussão que, pelo menos para mim, não nasceu agora. A Concha sempre foi um local onde havia uma tensão para gente como eu, mas que, para variar, o público geral nunca se deu conta.
O show que me fez retornar à Concha pareceu bem oportuno para ilustrar meus pontos. Fui com minha sobrinha e minha mãe (com seus setenta e alguma coisa, que ela não diz) ver a Família Gil, no espetáculo "Nós, a Gente". Foi lindo ver uma família tão querida, no que me pareceu uma celebração da vida de todos, mas principalmente, do verdadeiro Rei do Brasil, Gilberto Gil. Aos 81 anos, ele segue nos presenteando com seu talento e carisma, agora ao lado de seus filhos e netos que parecem ter herdado sua luz e conquistado o carinho do público.
Quando as pessoas começaram a levantar, logo nos primeiros acordes, fiquei pensando em quantos senhores e senhoras da idade de Gil poderiam ter a oportunidade de estar ali, assistindo-o, sendo inspirados por ele. Todos estavam encantados com o idoso Gilberto Gil e sua vitalidade invejável, mas escolheram o “assistir em pé” como a forma certa de ver o espetáculo e dificilmente voltariam atrás de sua decisão. Mesmo que isso fosse um obstáculo a outros idosos, pessoas com deficiência (invisíveis ou nem tanto), grávidas e etc, de curtir o mesmo show que estavam curtindo.
“Ah Mila, que exagero, tem local reservado para PCD na Concha”. Tem, uns 3 ou 4 lá em cima perto do bar, mais uns 3 ou 4 lá embaixo perto do palco, nas laterais. Esses últimos, caso alguém se levante, perdem completamente o sentido pois ficam com a visão do palco prejudicada também, tem que ir abrindo caminho no meio da multidão que se aglomera ali e colar no palco. Isso quando não é engolida pela quantidade de gente, que chega no último minuto antes do início e passa na frente, rapidamente. Então, se esticarmos muito a corda e dissermos que há 10 lugares, numa arena com capacidade para 5 mil pessoas, dá 0,2% de espaço reservado. Para quem não sabe, temos um pouco mais de 20% da população com algum tipo de deficiência no Brasil. A conta não fecha.
Caso as ciências exatas não convençam, vamos falar de humanas. Imaginei a família Gil planejando aquela imensa turnê, com muitos detalhes, que muito provavelmente devem girar em torno das necessidades de Gil. A quantidade de horas de ensaio, sua alimentação, seu sono, a preparação de sua voz e seu corpo, que já viveu bastante e produziu genialidades. Gil agora é um senhor idoso, repito, porque é importante enfatizar e não enxergar ídolos que admiramos somente pelo viés de sua capacidade, de sua força, da sua produção. Sob o risco de enxergar a vida de uma pessoa idosa possível apenas quando se trata de alguém como ele, que ainda produz, que está todo prosa. Esquecemos do idoso ordinário, das mães, os pais e os avós de todos nós que estão ao nosso lado e gostariam de viver experiências como aquela que Gil está nos proporcionando. Onde fica a oportunidade dessas pessoas de caminhar junto com aquele que cantou sobre várias fases de suas vidas?
A partir do momento que entendemos como aceitáveis espaços hostis para pessoas idosas e com deficiência, como se tornou a Concha Acústica de Salvador, estamos perdendo a oportunidade de fazer o que a família Gil está fazendo tão bem: juntando cada peça que compõe aquele grupo de pessoas e costurando uma linda colcha de retalhos que nos envolve e nos aquece, tendo Gil como linha que costura o todo. Ao escolher ficar em pé, no lugar de sentado, estamos afirmando que está tudo bem se excluirmos algumas pessoas naquele processo de se divertir e se encantar assistindo a um espetáculo. Quando escolhemos ficar sentados, um maior o número de pessoas são capazes de assistir a uma apresentação na Concha. Se a escolha for ficar em pé, estamos assumindo que a exclusão é um caminho melhor, para o bem de quem pode, em detrimento de quem não pode.
E essa é a ideia frequente que a população tem sobre acessibilidade. Chegar a essa conclusão me entristeceu durante um momento em que eu deveria estar celebrando. Se as pessoas podem acessar algo, elas deixam de se preocupar com quem não consegue fazer o mesmo. O princípio que norteia a acessibilidade é justamente pensar espaços e serviços de forma que o maior número de pessoas consiga usufruir deles. E a grande barreira para alcançarmos uma sociedade acessível está justamente na falsa ideia estabelecida de que acessibilidade é algo destinado a pessoas com deficiência, que o sujeito padrão não deve se preocupar com isso, está fora do seu radar, afinal, ele não precisa. Quando pessoas com deficiência defendem com unhas e dentes a bandeira da acessibilidade, é porque é a única forma que temos de garantir os direitos que estão atrás de cada muro que o mundo construiu e que nos mantém de fora, num cercadinho. Se, no entanto, alcançássemos uma sociedade acessível, toda a população seria beneficiada. A proposta é ficar cada dia menos gente de fora, destruir as barreiras que nos cercam. A não ser que viver num mundo injusto e excludente seja algo que as pessoas desejem no sigilo e eu não esteja sabendo.
Um outro argumento que ouço com frequência é de que a estrutura da Concha, os degraus de cimento, não são confortáveis de sentar e eu, no topo da minha almofada de ar caríssima, tenho que concordar. Por isso é cada dia mais comum ver alguém carregando uma almofada a tiracolo para curtir o show. Um conceito muito conhecido das pessoas com deficiência, esse de usar algum recurso ou serviço para nos ajudar a realizar tarefas, promovendo a inclusão, e se chama “tecnologia assistiva”. Um elevador para subir andares é uma tecnologia assistiva, um par de óculos para enxergar é uma tecnologia assistiva, portanto uma almofada para conseguir sentar num degrau de cimento também seria. Repare que, novamente, o uso da almofada não exclui outras pessoas, caso alguém opte por não usá-las. Enquanto obstruir escadas, como eu vi acontecer bastante ontem, por exemplo, é uma forma bastante eficaz de dificultar o acesso e a circulação de todos, independente de ter ou não uma deficiência.
Um outro ponto alto do show foi Preta Gil e a forma como o público a acolheu. Em dado momento, Preta ficou fora do palco por algum tempo, e voltou triunfante, aquecendo tudo com suas músicas. Provavelmente, não posso afirmar ao certo, Preta deve ter se ausentado para descansar, imagino que essas pausas são necessárias para quem não pode se cansar muito devido ao tratamento de câncer ao qual ela está sendo submetida. A possibilidade de Preta deixar o palco por um tempo é o que proporciona que esteja ali, junto à sua família. Mais um argumento no sentido de que, quando permitimos que as pessoas usufruam das coisas dentro dos seus limites e capacidades, possibilitamos que elas mostrem sua potência e força. Ainda que esse movimento não seja tão consciente, dar vazão à nossa habilidade de ler o que o outro está sentindo e contribuir para seu bem estar, é o que nos fez evoluir como um grupo. Sem atos cuidadosos partindo de quem está mais forte para quem está mais fraco, não teríamos chegado onde chegamos enquanto sociedade.
Além do perrengue do senta e levanta, quem fica lá no espaço reservado próximo ao bar tem que lidar com muita conversa, em tom de voz alto, daqueles que acham melhor conversar (repare, não é comentar, é conversar mesmo, sobre assuntos diversos e não relacionados ao espetáculo) do que prestigiar os artistas. Eu não consegui ouvir uma palavra do que Gil disse entre uma música e outra, com seu tom sempre tão delicado, que nos embalou todos esses anos. Só dava para ouvir a voz das pessoas atrás de mim. Minha mãe conseguiu ouvir muito menos, pediatra há 50 anos, já percebe um pouco de perda auditiva natural da profissão. Se algo bonito e tocante foi dito por Gil, como vi alguns amigos relatarem, eu não pude escutar. Saí inspirada, sim, encantada com o show. Mas poderia ter sido mais, se eu conseguisse ter a experiência completa. O que Gil tem a dizer sobre o passar dos anos, sobre a finitude, poderia ressoar lindamente naqueles que estão na mesma fase da vida que ele, mas vai ter que ficar para a próxima.
Não foi só eu que reclamei da forma como está acontecendo essa dinâmica na Concha. Quando postei um story descontente no instagram recebi muitos replies e vi outras pessoas reclamando em suas páginas, sobre estar muito cheio, sobre barulho, optei por deixar uns prints das conversas abaixo para ilustrar. As reclamações sobre parecer estar com mais gente do que a capacidade, por exemplo, tem sido uma constante nos últimos eventos. Se essa polêmica do senta e levanta emergiu, a Secretaria de Cultura devia parar de ignorá-la e agir para além de um aviso frouxo sobre a “espontaneidade do lugar” que toca antes do início de cada espetáculo. Dá para criar zonas em que seja demarcado se será um local para assistir em pé ou sentado, vender ingressos específicos e conscientizar a todos sobre as vantagens de ter as duas opções, para atender a diversidade do público. Além disso, não ficar de braços cruzados sobre o problema de tanta gente parada nas escadas. Ainda que eu seja leiga no assunto, não me parece seguro ter escadas obstruídas completamente, caso seja necessário prestar socorro ou uma evacuação rápida.
A Concha Acústica, famosa justamente pela proximidade que proporciona ao artista para com seu público, se continuar assim, vai revelar durante o show muitos rostos insatisfeitos, emburrados, espremidos. É preocupante que estejamos sempre tão habituados a experiências difíceis, hostis, sob a justificativa de que “sempre foi assim”, quando poderíamos perfeitamente caminhar para um lugar onde é possível usufruir das coisas bonitas sem que seja tão cansativo. E principalmente, sem deixar tanta gente de fora. A Família Gil está aí para mostrar que quando “Nós, a Gente” se reúne para celebrar algo junto, tudo fica mais bonito e enriquecedor.
Eu era "levanter" até ler Mila sobre o assunto. Minha posição anterior era baseada numa "cultura de estádio", que em tese sofreria algum abalo com o hábito de sentar em arquibancadas. Mas percebi que só não tinha pensado direito sobre o assunto. A solução é tão simples que prova a total falta de preocupação com a organização dos eventos com o conforto do seu público, seja ele capaz de ficar em pé ou não.
Destacando aqui a sugestão no texto, "Dá para criar zonas em que seja demarcado se será um local para assistir em pé ou sentado, vender ingressos específicos e conscientizar a todos sobre as vantagens de ter as duas opções, para atender a diversidade do público".
Ler esse texto me fez pensar sobre outras situações em que um hábito é excludente e que, com uma simples ação, pode incluir e enriquecer seja lá que evento ou situação for.
Assisti a esse mesmo show na Bélgica e aconteceu a mesmíssima coisa. Quando todo mundo levantou, eu, que tenho 1,50m de altura, não consegui ver mais nada. Tinha uma grávida sentada ao meu lado que permaneceu sentada e eu fiquei pensando nela e em outras pessoas ali que não poderiam se levantar. Achei que os seguranças fariam alguma coisa, mas nada. Eu espero que seu texto chegue a mais e mais pessoas e que as casas de show façam medidas para impedir isso no futuro.