22ª Edição - Acostumar o olhar
É importante que se veja mais, que se veja muito para encararmos nossos processos
A 22ª Edição ficou uma mistura de desabafo com alento. Eu estou ainda me habituando ao substack, então deixem seus pitacos para eu saber que está ficando tudo certinho. Até mais!
Minha cadeira motorizada já estava ameaçando a perda total que deu agora, então há meses resolvi ignorar o carnaval ativamente e programei que ficaria em casa, entre amigos. Seria fácil me divertir assim e foi. Nem sempre é possível se preparar para todos os percalços da vida, mas quando se aprende que algumas perdas são inevitáveis, que o barco tem um iceberg pela frente, pode dar tempo de recalcular a rota.
Aproveitei para ficar com meus botões escrevendo, e até tentei ignorar - aí sim foi difícil - um assunto que chegou repetidamente em mim nas últimas semanas: como as pessoas decidem colocar as lentes de lamento, de pena, sobre alguns de nós. Não importa o que ativamente mostramos, para alguns, a parte vista é sempre a mesma. Como se estivéssemos vestidos com um telão de LED que passa para cada um o que suas cabeças decidem transmitir. Toda sorte de julgamentos, cenários, predicados serão exibidos sobre minha pele, não importa onde eu esteja, o que eu faça, o quanto conquiste.
A importantíssima aparição de Arlindo Cruz na Sapucaí foi um exemplo disso. Causou incômodo em pessoas que julgaram que ele estivesse com uma deficiência grave demais para estar ali, recebendo homenagem pela sua bonita trajetória. Houve até quem desse explicação religiosa para o que ele está vivendo. Independente do que foi acordado com a família, equipe médica e escola de samba, houve quem dissesse que “aquele não é Arlindo de verdade, não é o Arlindo que está em nossos corações”, como se, ao passar a ter uma deficiência, estivesse anulado quem ele foi um dia. Como se as portas dos corações tivessem menos que 70 cm, não passasse uma cadeira de rodas.
A sociedade esconde tão eficientemente certos grupos que, quando aparecem, causam comoção. Vão se esquecendo do que ocorre a alguém que adquire uma deficiência, vão esquecendo como é ser idoso, colocando tanto debaixo do tapete, que a visão de nossos corpos machuca as vistas de quem decide fingir que não existimos. É como se Arlindo tivesse pulado o muro que construíram para tapar a vista do que precisa ser encarado. Quando ele aparece lá, para mim, é um bálsamo, porque celebra o que eu entendo que precisa ser visto mais vezes. Já para quem não consegue ver com bons olhos coisas relativas à deficiência, entende como castigo, dor, lamentável.
Esse estranhamento nasce de uma vontade de apagar a informação de que pessoas como Arlindo existem e podem ser qualquer um de nós, no futuro. Diariamente lidamos com o fato de que coisas voltadas para nosso público (pessoas com deficiência, idosos, gordos, etc) são frequentemente adaptações posteriores, quase nunca nascem de um projeto inicial. Isso quando são feitas. Estão sempre em algum cantinho, escondido, que tem que caçar quem é o responsável, para quem pedir. As portas laterais que nos dão acesso a espaços não são só literais. Há muitas etapas até chegarmos onde os outros chegam, corremos por fora.
Como forma de dar um tiquinho de visibilidade a pessoas como eu, passei a falar sobre minha vida, já tratei sobre meus motivos em algumas edições. É uma pequena gota num oceano de vivências diferentes, é bom mostrar para quem normalmente não me conheceria. Pelo mesmo motivo, gosto de seguir perfis de pessoas com os mais diversos corpos, que fazem o mesmo que eu. Expõem suas experiências para naturalizar sua presença no mundo. Traz um alívio no dia a dia, vejo possibilidades, caminhos. Dia desses, compartilhei a seguinte foto de wheelchairsparkle:
(descrição da foto: mulher tatuada usando lingerie preta usa uma máscara de bipap ligada a um tubo, sob a meia-luz)
Achei uma foto lindíssima, mas como disse acima, o estranhamento nas pessoas é tão forte, que até alguém relativamente próximo a mim teve a velha reação de perceber tal cena somente pela lente do lamento. Respondeu ao meu story da seguinte forma:
Maquiada de empatia, deixou transparecer que não consegue encarar a vida de uma pessoa com deficiência que não seja pelo viés da dor, da falta, da desesperança. Viu no que era só uma foto de lingerie de alguém com deficiência, se achando linda, um motivo para lamentar um suposto futuro meu. Uma forma inclusive bem braba de despersonalizar as experiências, colocando tudo num mesmo balaio. Comunicou a mim que é essa sempre a lente pela qual serei vista, não importa o quão bem eu esteja, quão feliz eu pareça. Como eu disse, estou coberta de LEDs e a pessoa decide ver em mim a própria mocinha sofrida de uma novela mexicana.
Não sei bem o que desestimularia esse tipo de conduta. Talvez com o tempo, mais de nós em locais de destaque. Quando nos mostramos, estamos sujeitos a ouvir toda sorte de comentários desagradáveis que, ora nos fazem querer aparecer menos, ora servem de combustível para mostrarmos a forma tosca como nos vêem. Acaba sendo um ciclo vicioso onde damos palco a quem emite opiniões desagradáveis, enquanto tentamos nos provar sermos dignos de estar em qualquer canto. Eu mesma pensei muito em mostrar a interação acima. Mas não vejo outra forma de desnudar esse comportamento que dorme aí dentro de tanta gente bem intencionada.
É sempre necessário se voltar contra essa moldura que querem colocar em nossas existências, como fez Madonna depois que sua participação no Grammy se resumiu a fotos de close de seu rosto, evidenciando procedimentos estéticos que ela fez. Em suas redes sociais, Madonna declarou que ela estava ali para apresentar o primeiro prêmio grammy vencido por uma pessoa trans. Mas sua aparição foi reduzida às supostas deformações de seu rosto. Junto com seu questionamento, ela colocou vídeos e fotos que transbordam a alegria em estar com Sam Smith, Kim Petras e vários outros amigos comemorando aquela que é uma vitória enorme para toda comunidade LGBTQIA+, a qual Madonna sempre foi uma grande aliada.
Sua alegria, sua história, sua luta e seu talento ficaram eclipsados pelo julgamento à sua aparência. Até por quem esperava que Madonna fosse receber seu envelhecer de forma revolucionária, como fez com outras situações. Como se para ela fosse necessário ocupar um lugar que pouca gente ocuparia, custe o que custar. Toda mulher quando passa de certa idade, ganha de brinde comentários sobre como ela está envelhecendo bem ou mal, não importa no que atue.
Enxergar o processo do envelhecimento e a deficiência como algo tão importante para experiência humana seria extremamente saudável para todos. É um processo muito solitário, que passamos a vida ignorando e que quando recai sobre nós ou um dos nossos, percebemos de forma bastante frágil. Como se não tivéssemos nascido para isso.
Para desnudar um pouco desse processo, a documentarista Kirsten Johnson fez um filme sobre o envelhecimento de seu pai, o psiquiatra Dick Johnson. No belíssimo e sensível documentário “As mortes de Dick Johnson”, Kirsten e Dick encenam como seria a sua morte e mostram o dia a dia de alguém que está passando por um processo de perda de memória, pela avançada idade. A mãe de Kirsten já havia falecido anos antes, com Alzheimer, e fica claro como ignorar as questões que se criaram relativas à doença foi uma fonte muito maior de sofrimento do que o que ela está fazendo agora: encarando a morte próxima do seu querido pai de frente, ao mesmo tempo que ajuda o mundo a jogar luz nesse tema.
Considero que essa seja uma boa forma de nos redimir dessa ideia negativa que temos sobre a velhice, a deficiência e outras eventuais perdas de função que acontecem pela vida. Devemos nos permitir ver mais e mais exemplos para que possamos enxergar as potências que vivem dentro do que consideramos ser algo perto demais da morte, do fim.
Vi esse movimento ser possível num comentário que minha amiga
deixou na minha última edição:No tarô existe um arcano chamado A Força que poderia super representar seu texto de hoje. Nela, um leão está aparentemente bem descontrolado e uma moça, de aparência frágil, tenta controlá-lo (quem é que não tem aparência frágil diante de um leão desembestado?). A questão é que a moça não está nem um pouco nervosa com essa tarefa. Ela consegue controlá-lo com um rosto muito sereno e tranquilo, muito calma, cumprindo a tarefa com sucesso. Na própria carta, sobre a cabeça dela, vemos uma pista de como ela está conseguindo: é com o intelecto e com as artimanhas da mente que ela consegue cumprir a tarefa, já que a força física ajudaria pouco ou nada nessa situação. Essas descrições que você faz de como lida com a sua vida me deixam muito feliz de ser sua amiga, você é inteligente demais. <3
Patricia me conhece de perto e sabe que nem sempre esse leão está controlado, nem sempre estou serena. Mas foi possível para ela ver em mim uma capacidade, uma possibilidade de domar alguns leões. No telão de led que me cobre, Patrícia escolheu transmitir algo bom, falar sobre o que ela conhece das minhas conquistas, do que ela sabe que eu sou capaz de fazer.
Ainda que existam coisas que eu não sou capaz, ela bem sabe, esse movimento de enxergar as possibilidades de alguém com deficiência e o que isso pode trazer como significado para a vida de todos é o que vai nos libertar de enxergar sempre o pior, o lamentável em nossas existências. Porque o que é lamentável costuma ser deixado de lado, como insolucionável, como se não pudesse ser abraçado e acolhido.
Ver em mim a carta da Força é também, de certa maneira, perceber a si enquanto força, quando preciso for. Quando lhe faltar algum sentido ou função, como falta a mim, Patrícia saberá que existem maneiras de domar o leão desembestado, porque ela já me viu fazê-lo.
Agora que o ano começa de fato, espero que a imagem de Arlindo Cruz recebendo sua justa homenagem na Sapucaí fique passando na mente de todos nós. É uma forma de lembrar que podemos ser celebrados pelo que fazemos, ainda que algo tenha mudado e nos falte algum sentido ou função, naquele momento. Basta que nos seja possível viver como os demais, alcançaremos nosso lugar de destaque no carro alegórico que decidir nos mostrar.
Não canso da inteligência e da qualidade das tuas crônicas. A sagacidade da frase "Como se as portas dos corações tivessem menos que 70 cm, não passasse uma cadeira de rodas" é primorosa.
Estou passada de ter sido a Regina Casé do seu texto - nem de longe o principal assunto, mas apareci pra fazer uma figuração de luxo sobre ele.
Eu vejo que as pessoas que fazem esses comentários (incluindo o abençoado que foi na sua DM chorar) estão, na verdade, c̵o̵m̵ ̵i̵n̵v̵e̵j̵a̵ ̵d̵e̵ ̵d̵e̵s̵f̵i̵l̵a̵r̵e̵m̵ ̵s̵e̵n̵t̵a̵d̵a̵s̵ meio desesperadas por verem as caixinhas onde elas colocam os corpos com deficiência derreterem cada vez que um corpo desses é exposto, destacado. Reagir com "pena" (não é pena), com "tristeza" (não é tristeza), é uma tentativa desesperada de fazer o rótulo voltar a funcionar, assim, na marra. Assim como você, acho que se esse movimento for feito mais vezes, não vai funcionar mais. Beijos!