21ª Edição - Cuidar para o cotidiano
Como um pássaro caído e um documentário sobre elefantes me fizeram viajar no tempo.
Olá! A 21ª Edição da newsletter está sendo lançada pela primeira vez no substack. Então, se algo estiver errado, ou tiver alguma sugestão de como posso melhorar: qualquer pitaco é bem vindo, manda aí. Estou ainda me habituando a esse novo ecosistema. Ao final do texto tem umas indicações de coisas que tem a ver com o tema, que eu vou tentar trazer sempre a partir de agora. Ou não, vocês me conhecem. Feliz que vocês continuam por aqui e até a próxima!
Era uma terça comum quando um pássaro silvestre caiu no playground do meu prédio, bem na frente de minha irmã, atrasada para o trabalho. Ela me liga:
- Mila, arruma uma caixa que eu vou pedir para alguém que conheço do Centro de Triagem de animais silvestres vir buscar um passarinho que tá machucado, caído aqui. Fica com ele até eles chegarem, ok?
Primeira coisa que pensei, disse a ela:
- Tá, mas como eu vou fazer isso?
Ela continuou com o pedido, não se importava como eu faria,mesmo sabendo que eu não sou capaz de correr atrás de um bicho de pernas, que dirá de asas. Tinha certeza que eu daria um jeito de não deixar aquele passarinho machucado caído ali, onde passam carros. Ligaria para meu condomínio, pediria a algum conhecido, arrumaria uma caixa e ficaria com ele até o resgate chegar.
Ela aprendeu isso sobre mim nos anos em que me deixou com minhas sobrinhas, enquanto trabalhava. Dentro das minhas possibilidades, eu cuidava das meninas, até que ela estivesse em casa. Morávamos todos juntos, eu, minha mãe, ela e meu cunhado, que trabalhavam muito, meu irmão e até meu tio. Eu estava ainda na faculdade, com menos preocupações e conseguia dar conta de muitas tarefas com elas. Fui a tia que brincava, fazia dever de casa, ia para festinhas de criança, colocava para dormir e até já fui ao médico, quando necessário.
Hoje, ainda bem, já se fala em “rede de apoio”. Naquela época, isso que fazíamos uma com a outra não tinha nome, pelo menos não que eu soubesse. O que eu sabia era que eu precisava deles (também de meu irmão, de meu tio), e eles precisavam de mim. Na minha percepção, era mais do que natural que eu cuidasse das crianças que moravam na minha casa. Para além do laço de sangue, me parecia um compromisso com ser a adulta "in charge", ainda que eu me sentisse tão criança quanto elas, às vezes.
Durante a meia hora de espera, deu tempo de pensar em muita coisa, enquanto torcia para o passarinho não reunir forças o suficiente para abrir a caixa. “Será que sou mais forte ou mais fraca que ele?” Lembrei do documentário da Netflix, “Como Cuidar de um Bebê Elefante”, que recentemente foi indicado ao Oscar. Nele, um casal que mora no coração de uma floresta na Índia, cuida de bebês elefantes órfãos. As cenas em que tentam controlar os elefantinhos com o maior amor do mundo, ao mesmo tempo em que elefantinhos, com o mesmo amor, quase os derrubavam me fez dar altas risadas, ao lembrar que já estive nesse lugar.
Era uma velha conhecida minha essa necessidade de manter a situação sob controle, quase num balé bem orquestrado para lidar com aqueles pequenos seres enormes. Fui transportada para um tempo em que eu ficava sozinha com minhas sobrinhas, por algum intervalo de tempo em casa, ou as levava em algum passeio, festinha, médico que minha irmã não conseguia ir. O casal que cuidava dos elefantinhos órfãos estava sempre se encarregando de mantê-los ali por perto, pois não seriam capazes de segurar qualquer um deles caso necessário. Desde um delicioso banho de rio (com escovinha e tudo!) nos pequenos elefantes a uma pintura tradicional de uma festa para Ganesha, fiquei grudada na tv durante os 40 minutos em que eles lidam tão bem com os bichinhos, que são grandes crianças levadas.
Na cadeira de rodas, eu também não conseguia conter minhas sobrinhas usando a força se precisasse. O jeito era justamente entrar nessa dança bem atenta, em que se tece o ritmo por muita conversa, acordos e checagens constantes, de maneira a estar sempre prendendo a atenção delas e aprendendo sempre qual o melhor momento de intervir antes que algo fugisse do controle. E, assim como os elefantinhos, elas não sabiam o que estavam fazendo, mas acertavam muito na arte de serem meninas graciosas, cheias de afeto e muito inteligentes.
Eu também sequer sabia o que eu estava fazendo, mas a vida foi se enchendo de sentido enquanto acontecia esse cuidar diário, mesmo com os muitos erros que cometi. Certas coisas a gente não aprende antes de ser demandada a executar. Vez ou outra me arrependo de não ter documentado alguns desses momentos meus com elas- não era a mania da época como é hoje. Mas seria valioso para muita gente que pensa que pessoas com deficiência só podem ser objetos de cuidado, nunca cuidadores. Não faria disso um tutorial. Cada situação é única, teria mais uma carinha de encorajamento e uma celebração às possibilidades infinitas do cuidar.
Assim como no documentário, não teria história com começo, meio e fim, nem narrador. Os dias e as tarefas iam se sucedendo, formando o laço que nos une até hoje. Estamos habituados com documentários sobre animais com um roteirinho, mas esse não é assim. Ele capta a beleza do dia a dia sem uma linearidade pré-estabelecida, e assim te prende pelos seus 40 minutinhos. Enquanto o casal conversa, suas falas são entrecortadas por música ou sons da floresta, se descortinando a complexa simplicidade de um dia após o outro. Mais uma vez, o passarinho dentro da caixa se sacode, às 14 horas de uma terça, me lembrando que eu precisava voltar a minha rotina, mas não antes de conseguir fazer com que ele retornasse à vida de passarinho dele.
Cuidar de alguém é, antes de tudo, isto: garantir que hajam dias normais, correndo da melhor forma, para os indivíduos envolvidos. É com o sossego de ter alguém que nos proteja e nos nutra, que conseguimos desenvolver aquilo que podemos ser. Haverão intercorrências, sem dúvida. Cortes profundos, momentos de epifania, coisas que nos tiram do eixo e nos fazem desejar novamente retomar os dias iguais. É assim que, enquanto retira displicentemente cascas de um tronco, a “mãe” do elefante conta que sua filha morreu recentemente, e passar esse tempo com o elefantinho a faz rememorar as brincadeiras que tinham juntas. Alheio a importância que tem naquele momento, de curar uma ferida tão grande e recente com um simples brincar, o elefantinho devora as cascas, distraído. A vida se revela, então, como aquilo que acontece enquanto nós tentamos manter vivos uns aos outros, passarinhos caídos dentro de caixas, para garantir que sejam possíveis dias normais para nós.
No dia seguinte ao tal resgate, quis saber notícias do tal bichinho. O veterinário me disse que o passarinho estava melhor, mas que precisaria aprender a voar direito, porque aparentemente ele ainda não sabe. Pergunto o que teria que ser feito para isso e ele me responde: “precisamos fazer com que ele viva uma vida de passarinho o mais normal possível, até aprender”. Um dia depois do outro, observando outros pássaros, sendo alimentado e cuidado, ele finalmente estará pronto. Aliviada, penso que é o que eu desejo a todos, afinal. Que possamos experimentar também esse cuidado uns com os outros, que nos permita aprender a sermos humanos, enquanto somos o mais humano possível.
Esta edição contou com a ajuda mais que especial de Carla Soares do belíssimo
, com quem eu aprendo muito sobre escrita, mas principalmente sobre deixar o cotidiano entrar com sua majestosa simplicidade pelos nossos olhos. Observar onde vivemos, o que comemos, o tempo das coisas é algo que Carla faz lindamente, enquanto nos convida a fazer o mesmo com seus posts sobre coisas do seu dia a dia.Também falando sobre se deixar entreter pelo cotidiano mágico, essa semana na página do Sítio Estrela da minha querida amiga Nana Gadelha, estão nascendo muitos pintinhos e eu tenho adorado observar isso. Fora tudo que tem a ver com a beleza de uma vida nascendo, o que mais me tocou é como a gente precisa respeitar o tempo das coisas, mesmo quando parece melhor interferir. Os pintinhos ficam um tempão tentando nascer, parece que não vai dar e de repente: tchanrã! Foi bom ter esse lembrete de que certas coisas não devem ser aceleradas. Sim, janeiro está demorando, mas hoje acaba. Logo estaremos sentindo falta.
Nos vemos na próxima edição!
No tarô existe um arcano chamado A Força que poderia super representar seu texto de hoje. Nela, um leão está aparentemente bem descontrolado e uma moça, de aparência frágil, tenta controlá-lo (quem é que não tem aparência frágil diante de um leão desembestado?). A questão é que a moça não está nem um pouco nervosa com essa tarefa. Ela consegue controlá-lo com um rosto muito sereno e tranquilo, muito calma, cumprindo a tarefa com sucesso. Na própria carta, sobre a cabeça dela, vemos uma pista de como ela está conseguindo: é com o intelecto e com as artimanhas da mente que ela consegue cumprir a tarefa, já que a força física ajudaria pouco ou nada nessa situação. Essas descrições que você faz de como lida com a sua vida me deixam muito feliz de ser sua amiga, você é inteligente demais. <3
Na moral essa é uma das coisas mais lindas que você já me disse e olha que você me diz coisas bonitas o tempo inteiro. Amei a explicação sobre a carta, obrigada por ser uma amiga tão inteligente e doce. Que possamos fazer nossas cabecinhas controlar os leões de todo dia. Te amo!