Somos nós a alegria da Cidade - 28ª Edição
Como estar no Malê e na Casa das Histórias me fez ver o brilho que eu vejo em Salvador em mim.
Olho para minha cidade, Salvador, como quem olha sua criança se apresentando na festinha de fim de ano da escola. Babo por sua graciosidade, seu carisma, sua forma peculiar de dançar. Ignoro seus erros, sua falta de ensaio e preocupação com os coleguinhas e quase morro de emoção quando ela me lança um olhar e me dá um tchauzinho. Nesta época do ano, em que muitos holofotes estão voltados para Salvador, sinto, ao mesmo tempo, orgulho dessa menina e inveja de quem pode estar sempre com ela. Adoro ser soteropolitana, estar na minha cidade, me reconhecer nas coisas, ouvir meu sotaque. Ao mesmo tempo em que preciso digerir todas as vezes que me sinto de fora, mesmo morando aqui.
Viver Salvador tem sido um tema importante para mim e, nos últimos anos, sempre que tive a oportunidade, tratei disso em meus projetos. Criei o boramesmo para mostrar lugares acessíveis na cidade por acreditar que mostrar as possibilidades é tão poderoso quanto denunciar os erros, enfraquecendo a desculpa esfarrapada de que é impossível acessibilizar o que temos. Anos atrás, quando fiz minha Tedx, também tratei sobre direito à cidade e como é algo que deveria ser motivo de preocupação para todos, clica aqui nesse link, se nunca assistiu o vídeo.
E foi principalmente por ser um tema tão caro para mim, que fiquei muito feliz quando me convidaram para estar na Casa das Histórias, o mais novo equipamento cultural da cidade. O museu busca contar sobre Salvador através das falas de seus habitantes, a relação que tem com a cidade, o que fazem, como vivem. Em dezembro, recebi uma mensagem de uma pessoa, que eu não conhecia, apresentando o projeto e perguntando se eu queria fazer parte. Para isso, passaria por uma seleção, contaria quem eu sou, de onde venho, o que gosto e de que forma me relaciono com Salvador.
Fui selecionada e estou lá, junto a outras pessoas admiráveis da minha terra, num espaço que eu fiquei bem feliz de conhecer. Além da acessibilidade física, a Casa das Histórias se preocupou em tornar boa parte de conteúdo acessível, com algumas obras táteis, maquetes em braille e intérprete de libras disponível por agendamento. Não seria certo contar a história da cidade deixando a população com deficiência, parte integrante dela, de lado, como é o habitual. Fiquei bem satisfeita em sentir que eu e outras pessoas com deficiência poderiam se sentir mais à vontade para conhecer suas histórias lá. Iniciativas como essa aquecem o orgulho e me fazem sentir pertencente, não só enquanto indivíduo, mas enquanto um grupo que frequentemente é esquecido no churrasco.
Depois de visitar a Casa das Histórias, fui almoçar com minha família em frente a Baía de Todos os Santos, com o mar estalando de tão azul. Fiquei refletindo sobre o quanto eu sou feliz por ser daqui. Apesar da exclusão que Salvador pratica com suas pessoas com deficiência, como eu, nutro por ela quase uma devoção. Talvez devoção não seja a palavra certa, quem é devoto não faz muitas perguntas, simplesmente acredita, venera. Já eu procuro sempre questionar Salvador. E essa foi uma das razões para ter aceitado o convite: estar ali para ter certeza que seria um projeto que incluísse, de alguma forma, pessoas com deficiência. Já perdi muita oportunidade de ganhar certas credenciais, frequentar certos espaços justamente por ter esse perfil questionador, mas estou ciente e quero continuar. É esse perfil que me coloca, também, em uma posição de poder falar livremente e, assim, me aproximar de outras pessoas igualmente livres que admiro. Como, por exemplo, Marcelo Zig, e seu Quilombo PCD, que me surpreendeu com um convite lindo: “Que tal sair no Malê Debalê numa ala com pessoas com deficiência?”
Aceitei o convite de Marcelo com todo o entusiasmo, chamei as amigas mais chegadas, e contei as horas para sair na Avenida, coloquei mais imagens lá no meu instagram. Quando me vi naquele trecho tão celebrado, ao lado de outras pessoas com deficiência como eu, senti que estava vivendo um sonho que eu nem sabia que tinha. Mais que isso: estava sendo apresentada a uma parte de mim que eu nem conhecia direito, mas que muito apreciava.
Quando Marcelo e o Malê me proporcionaram viver um carnaval tão de perto, do lado de dentro mesmo, me mostraram que permitir o acesso das pessoas à sua cidade é proporcionar que elas conheçam e celebrem quem são. Quando eu andei por aquela rua, dancei e senti a vibração da percussão, eu não só provei o carnaval, eu provei a mim mesma. Saboreei conhecer um pouco mais do que é feito ser uma soteropolitana orgulhosa de suas raízes. Olhar toda aquela dedicação ao bloco, sua forma de organização, fez eu perceber a força que também me conduz quando me reúno com os meus para dar vida a algo importante e bonito. Nos sorrisos que presenciei, das crianças aos idosos, reconheci a mesma alegria que me mantém firme em meus propósitos, que gosto de acreditar que é uma força tão mais poderosa que a indignação paralisante que nos toma de tempos em tempos. Algumas dessas coisas que eu só sei que sou porque pude ter contato com essa parte de mim também, não só aquela que é restringida, que me induz a pensar que não combino com a minha cidade. Que o que Salvador tem a oferecer não me cabe, é difícil, que o que eu preciso para me sentir parte da cidade não dá para encaixar na agenda, nos orçamentos, nas reformas, nos projetos, nas suas produções.
Quando nos deixam esquecer que fazemos parte do que é alegre, leve, nos separam e nos condenam ao isolamento, estão nos tirando a oportunidade de conhecer a parte de nós que é capaz de produzir em comunidade e em momentos de festa, celebração. Como se nossa vida fosse feita inteiramente de luta. Excluir pessoas com deficiência de espaços como o carnaval, as festas de largo, os espaços culturais, os bares, as rodas de samba é roubar de nós a oportunidade de nos ver exercendo papéis que tem como força-motriz a esperança, a beleza e o gozo. Se eu não tivesse recebido o convite de Marcelo, me visto ali dentro do maior balé afro do mundo, como eu confirmaria que aquilo é uma parte de mim que tanto me faz feliz?
Lembrei que no dia que fiz a sessão de fotos para a Casa das Histórias, encontrei Bagageryer Spilberg, ator transformista ícone da cena na nossa cidade. Enquanto ele se desmontava, eu lhe contava que tinha me emocionado com seu show que assisti na Casa da Música, no dia do orgulho LGBTQIAP+, meses antes. Show esse que só soube em cima da hora, pelas redes sociais. Era uma apresentação ,junto com outras drags que sempre quis conhecer mas que se apresentam em locais que nunca posso frequentar, pela ausência de acessibilidade. O show rolando e eu, maravilhada, pensava nas pessoas com deficiência que acabam não vivendo momentos como aquele porque estão impedidas de acessar uma parte tão importante da cultura de seu grupo. Sequer sabem que gostariam de viver aquilo, talvez até brilhando no palco. Imagine o quanto nos roubam a oportunidade de ter pessoas com deficiência LGBTQIAP+, por exemplo, se expressando através da arte drag, simplesmente por não terem contato, ou terem um contato mediado. Sem a oportunidade de viver as diversas camadas da nossa cidade, arriscamos estreitar nossos horizontes, cortar sujeitos que promoveriam conversas importantes, como diversidade, por exemplo, e suas intersecções. Roubamos, principalmente a oportunidade de se enxergarem enquanto sujeitos capazes de produzir beleza, sonho e mudança.
Escrevo essa edição da news numa quarta-feira de cinzas, enquanto assisto Salvador apresentar seus últimos passinhos de dança em seu espetáculo anual, cheia de energia e força. Vislumbro tudo aquilo que ela será capaz de realizar, um dia, se receber o acolhimento, o cuidado e o treinamento adequado, como se faz com criança. Detesto a imagem que gostam de passar de Salvador como uma cidade velha, dura, cheia de problemas insolucionáveis, condenada a escolhas de outros tempos. Talvez porque criança dê trabalho, pula o muro, sobe em árvore, em tempo de se estrepar. E muito pouca gente quer tomar para si o dever de cuidar dessa criança, nem que seja começando cada um por sua calçada.
O que eu senti na Avenida, na Casa das Histórias e sinto nas oportunidades em que me permitem viver Salvador é que ela é uma criança levada, sabida, difícil de disciplinar, mas cheia das possibilidades. Rica de tudo, com o sorriso no rosto, mas que ainda merece nossa atenção. Uma menina que aprende a chamar gente todos os anos, milhares delas, para suas ruas e viver uma alegria tão pueril, nova, que vai se organizando e se modificando, à medida que cresce. Às vezes, um braço desajeitado sai do ritmo, uma perna perde o compasso, mas pode ser ensinada, guiada para ser uma cidade que amadureça para dar sempre show, artista que é. Vai precisar de um pulso firme, um abraço acolhedor e dedicação para que a menina Salvador cresça feliz abraçando sua vocação de ser uma fonte inesgotável de alegria, não só para os que chegam, mas principalmente para aqueles que aqui habitam.
Sinto que rejuvenesci nesses dias que encontrei minha cidade de pertinho. Dei as mãos a essa menina e me senti próxima a criança que fui, quando não sabia ainda que alguns lugares me seriam interditados e explorava a cidade nos braços de minha família, como se fosse toda minha. Não a vejo como menina para passar a mão em sua cabeça, a ideia é seguir questionando para encontrar nela o espaço para ver as histórias de todas as crianças que aqui nascem acontecendo, com finais felizes. Porque uma cidade feliz é cheia de seus habitantes, todos eles, o ano todo, felizes. Afinal: “apesar de tanto não, tanta marginalidade, somos nós a alegria da cidade.”
Maravilha de texto Mila e fotos muito preciosas. São esses os momentos que a gente registra pra sempre com carinho em nossa história.
A gente precisa viver nossa cidade realmente
Que lindo relato, Mila!
Amar é isso mesmo. Sentir a emoção de pertencer, ter os olhos brilhando ao presenciar, mas questionar e questionar firmemente quando há necessidade.
Eu adorei Salvador. Me acolheu como poucos lugares fizeram. Minha esposa tem raízes profundas nessa cidade, o pai dela é baiano (de Terra Nova, mas viveu parte da juventude em Salvador) e tem vários familiares aí.
E quero mesmo que ela seja cada vez mais acessível, ou menos inacessível (tive alguns contratempos com acessibilidade quando eu e minha esposa estivemos aí, em 2019)
Você agora faz parte da história soteropolitana. Com total e absoluta justiça e merecimento, diga-se.
E que futuramente a cidade possa ser tão acolhedora aos pcds quanto possível.
Um beijo e um cheiro pra você!