Nem acredito que cheguei a trigésima edição. Esse texto é especial porque faz tempo que venho lidando com essa ideia de ser da primeira geração de pessoas com deficiência que alcança certos espaços. As fotos são de uma viagem que, pela primeira vez, fiz com amigos e foi deliciosa, só para ilustrar. Um beijo e até a próxima
Aguardo numa sala de espera igual a muitas outras onde já estive nesses 37 anos sendo uma pessoa com doença rara. Uma tv inaudível ligada, alguns acompanhantes e pacientes, como eu, enfileirados. Da minha faixa etária, no entanto, sou a única. Sou muito bem recebida pela fisioterapeuta que vai me atender. Dessa vez, não para me tratar, mas sim participar de uma pesquisa que busca aplicar um teste de força mais moderno para pacientes com doenças neuromusculares, especialmente amiotrofia. Esse novo método é considerado mais adequado para avaliar pacientes adultos porque, no lugar de usar movimentos que perdemos desde muito cedo, para os quais nem adiantaria mais aplicar teste como, por exemplo, rolar, levantar da cama, ele avalia atividades diárias. Se, por exemplo, consigo dirigir minha cadeira de rodas mesmo nos dias mais cansados e se me alimento mais rápido ou mais devagar que os membros da minha família. Esse tipo de teste já existe há algum tempo lá fora mas, para ser utilizado no Brasil, precisa ser traduzido e aplicado um número de vezes, seguindo à risca o procedimento, até se tornar validado em português e passe a ser utilizado oficialmente, em processos judiciais, por exemplo. A inexistência de testes nesse formato não era um problema antes porque pacientes com amiotrofia não envelheciam em grande número para precisar serem avaliados tão tarde.
A fisioterapeuta que me pediu para integrar a pesquisa escolheu como tema traduzir oficialmente este teste de força em sua dissertação de mestrado, de maneira que resultasse em algo útil, aplicável a pacientes como eu, que alcançaram uma idade adulta que jamais se pensou ser possível lá atrás, nos anos 90, quando fui diagnosticada. Até hoje, a amiotrofia espinhal tem o infantil como sobrenome, é vista muitas vezes como “doença de criança”. A preocupação, na época que eu era pequena, era somente em dar qualidade de vida porque longevidade, mesmo, ninguém podia garantir que tivéssemos. Pessoas com amiotrofia morriam cedo. Porém, os esforços em nos manter bem resultaram em anos de vida. E pessoas com doenças neuromusculares, no geral, têm vivido o bastante para experimentar, até mesmo, tratamentos medicamentosos que eu nunca imaginei ser possível, lá atrás.
Figuro entre os milhares de portadores de AME que recebem do SUS uma das três medicações descobertas nos últimos 10 anos, graças a um processo judicial no qual precisarei mostrar resultados desses testes, eventualmente. Já percebi uma melhora leve e, mais importante ainda, consigo provar em alguns testes que não tenho piorado, como costuma ocorrer com doenças neurodegenerativas. Com isso, estou me vendo enquanto pessoa que passou a ter experiências que não vivenciaria antes, se o rumo da doença tivesse se mantido.
Por isso tenho vivido desafios muito particulares. Nunca aprendi muito bem a pensar no futuro, por exemplo. Preciso sempre me planejar para manter minha vida sob controle, tentar antecipar o que pode dar errado, já que a deficiência não permite muito espaço de manobra. Prevejo que horas vou fazer xixi, porque não posso simplesmente me arrepender depois, se não tiver alguém ou algum lugar disponível. Equilibro horários de lazer, desgaste e terapia, de maneira que tenha Mila para cada coisa. Planejar é diferente de vislumbrar um futuro possível. Futuro me parece um senhor que anda sempre uns passos na minha frente, vestindo uma cartola de mágico, com um olhar fugidio. Um estranho com o qual eu apenas troco um aceno de cabeça e sorrio tímida.
Não tive muitos futuros nos quais me inspirar. Pessoas como eu, como disse, estão passando a viver esta fase que estou vivendo de uns tempos para cá. É claro que sonhei, muitas vezes, sonhos comuns aos meus amigos, minha família, mas sempre com a dúvida do “será que comigo seria assim?”. O meu sentimento era de que o presente era lucro, o futuro seria algo além. Agora, no entanto, vivo esse futuro, tropeço nos calcanhares desse senhor que anda apressado na minha frente. Ainda é difícil enxergar seu rosto, mas reconheço que estou aqui num lugar que não achei que pudesse estar, anos atrás. Sendo a primeira de muitos que virão.
As coisas que eu e outras pessoas com deficiência da minha geração estão vivendo são fruto de direitos adquiridos por aqueles que vieram lá atrás. Estamos usufruindo dos avanços, ao mesmo tempo em que nos perguntamos para onde queremos ir agora. Existe uma grande responsabilidade em ocupar esse lugar, como quem reconhece um terreno inexplorado e precisa vasculhar cada cantinho à procura dos perigos, sem se esquecer de relatar as belezas e possibilidades, de maneira que cresça a vontade de passar a viver por ali.
Os incômodos que sentimos são, em sua maior, gerados pela estranheza com a qual os outros nos encaram. O tempo todo estamos apontando o que nos falta para nos mantermos ali, quando queríamos, muitas vezes, só aproveitar a onda boa. Apesar de muito cansativa essa obrigação de lutar pelo que nos falta, espera-se que vá se dissipando aos poucos para os que virão depois de nós. Pessoas com deficiência existem desde que o mundo é mundo, mas só recentemente pudemos escolher quais lugares desejamos ocupar. Muitos de nós entraram pela janela, enquanto símbolos de superação, heróis, ávidos pelo reconhecimento. Mas pessoas com doenças neuromusculares, no entanto, hackeiam um pouco esse sistema. Precisamos apontar nosso valor, ainda que não possamos produzir, superar, adaptar nossos corpos como pessoas com deficiência que precisam de menos suporte, menos adaptações. Queremos aprender sobre o que nos é possível viver, ainda que nossa deficiência nos limite em alguns aspectos, que demande muitos cuidados, sem precisar dizer “não é nada”. Ou que a deficiência está nos espaços, nos olhos de quem vê. Às vezes, acontece, sim, de nossos corpos estarem extremamente exaustos, inaptos para as pequenas coisas, mas isso não nos retira o direito de querer usufruir do mundo.
Essa conversa me faz lembrar de quando ingressei na Faculdade de Direito da UFBA, em 2005. A minha turma era a primeira com 50% de estudantes cotistas e mesmo quem não tinha ingressado por cotas viveu dificuldades impostas por aqueles que queriam boicotar a iniciativa. Um dos nossos professores chegou a reprovar 90% da turma, colocando uma prova com dificuldade muito acima do que costumava aplicar, só para fazer parecer que a turma tinha sido intelectualmente prejudicada por ter alunos cotistas. Naquele tempo, não ficou claro logo de cara que era essa a intenção do professor intolerante. Éramos os primeiros a passar por aquilo, cotistas ou não, e não conseguimos apontar a causa daqueles e de outros comportamentos que queriam fazer parecer inadequada a inclusão de negros e indígenas na universidade pública. Precisou alguém passar por isso primeiro, e de novo e de novo, para que se entendessem os entraves e de que forma dava para fortalecer a política que hoje, 20 anos depois, vemos que ainda é bem sucedida.
Não se pode parar quando se é o primeiro da fila, quem vem atrás nos empurra para frente. Sem querer, nos impelem a ocupar os lugares que ainda não foram alcançados. E esse movimento, apesar de cansativo, dá sentido a toda dificuldade imposta. Num sonho recorrente que tenho desde a infância, eu corro muito dentro do mato, sem ninguém na minha frente. Algumas vezes, tem alguém me perseguindo. Noutras, é só alguém correndo comigo. Acho uma representação interessante do fato de estar na geração que não sabe, por exemplo, como vai ser envelhecer com amiotrofia, porque não conhecemos muitos que chegaram lá. No fim desses sonhos que tenho, quase sempre chego numa baía vazia, que não explica a razão de eu estar lá. Seria preciso entrar no mar para descobrir, até hoje nunca fiz, pelo menos, dormindo. Acordada, no entanto, tenho tentado saber com quantos paus se faz a canoa que terei que construir para descobrir o que tem daqui em diante. Para isso, olho para os lados. Além das pessoas com deficiência, outros corpos dissidentes me mostram que muitos caminhos estão sendo percorridos pela primeira vez por nossa geração. Observo como tentam controlar esses corpos, como seus pedidos causam surpresa para as pessoas acostumadas a nos verem do lado de fora. A cada conquista nossa, sinto que a fila anda um pouco, rumo a não sermos mais tão pioneiros assim.
O maior desafio, atualmente, tem sido saber dosar o aproveitamento do que eu já tenho com a possibilidade do que pode vir a ser. Paira no ar a dúvida: estou me contentando com pouco do que posso ou estou saboreando poder, sem ser tão extenuante, cansativo, uma exploração eterna? Quando escutei, esses dias, Liniker cantar em Caju, seu mais novo álbum, “quero saber se você vai correr atrás de mim num aeroporto”?, eu pensei que, agora, além de poder viver amores que não pareciam possíveis, ela também se pergunta se estarão ao seu lado apoiando vôos que por ventura consiga alçar. Se foi tão difícil chegar até aqui e conseguir o que temos, será que ainda demora para nos enxergar enquanto pessoas autorizadas a querer mais? Estamos dando a devida importância ao que desejamos ou apenas nos alegrando em conseguir o que antes parecia impossível?
Em uma das entrevistas que Liniker deu para divulgação do seu álbum, perguntam sobre o que significa as letras de veludo marrom, uma de suas músicas de amor. Ela responde que a letra fala sobre o que ainda quer viver e que acha que pode já estar vivendo, mas ainda não tem certeza. Para quem não teve muito espaço para vislumbrar o futuro, por muito tempo, pode acontecer dele se confundir com o agora. Muitas vezes não nos reconhecemos enquanto os primeiros a realizar esse ou aquele papel porque passamos muito tempo convencendo os outros de que é legítimo estar ali, que não é um acaso da sorte, que tem outros vindo logo atrás. Nos encontramos explorando as inúmeras novas possibilidades enquanto corpos dissidentes, sem saber se estamos querendo demais ou se nos é permitido, finalmente, testar a força que possuímos. Se o chão está firme mesmo naquele terreno novo, acidentado, que adentramos. É um teste que se mostra menos objetivo do que aquele que a fisioterapeuta aplicou em mim, para cumprir os requisitos da sua pesquisa, mas tenho palpites de que os resultado estarão estampados em algum lugar das histórias que ainda vão nos ouvir contar.
Conte mais, Mila, conte, conte. Por meio de sua newsletter sobre sua vida, em seus conto e romances, seu ponto de vista. Continue contando. Lindo texto, como sempre!
Seus textos são tão bonitos, já tava com saudade deles.
Um beijo