Era fevereiro quando eu escrevia confiante “A vida presta”, em forma de um post para essa newsletter, que nunca cheguei a publicar. Apesar das consecutivas derrotas que eu tenho vivido de 2024 para cá, a euforia do verão me pegava. Fernandinha Torres fazia os brasileiros orgulhosos, era quase carnaval, era Salvador. O astral tava, ó, lá em cima. Até que, voltando de um date, encontrei Ravi, meu cachorro de 12 anos, prostrado na minha cama. “Ele não levantou daí desde a hora que você saiu”, minha irmã me disse, quando cheguei.
Seria ciúme? Ravi sempre foi muito bonzinho, mas desde que tinha ganhado um irmão pequeno, Chicó, e tinha sido muito manuseado nas cirurgias que fez nos últimos dois anos, tinha ficado manhoso, calunduzento. Trouxeram-no para meu colo, estava gelado e seu pescoço tombava para o lado. Nunca lhe vi assim, certamente era caso de emergência. Cinco meses antes havia retirado o baço e estava sendo acompanhado de perto por cardiologista e oncologista. Não perdeu peso, nem apetite, muito menos saiu da sua rotina de jovem senhor. O que seria aquilo, então?
No dia seguinte recebi a péssima notícia que um tumor tomava todo seu fígado e que tinha um sangramento que o levaria em horas, na melhor da hipótese, em dias. A teimosia de minha mãe, que já me salvou algumas vezes, fez com que trouxéssemos Ravi para casa, mesmo com uma recomendação fria e seca de eutanásia. Os 12 dias que se seguiram foram de muito dengo, repouso, gratidão e questionamentos sobre o adoecimento ter acontecido tão rápido, tão sem sintomas. Até que Ravi descansou no nosso colo cercado de amor, na casa perto da praia, que ele tanto adorava.
Com a dor do luto que encharcou meu peito, a resposta era clara: a vida presta porra nenhuma. Não se digere bem uma partida repentina de uma criaturinha que espalhou tanto amor, gentileza e graça. É comum que os outros questionem essa invenção de trazer um ser para perto de si, já que ele fica tão pouco, e se vai por motivos tão esdrúxulos, não importa o cuidado. Ouvir “é por isso que não tenho cachorro” é comum. Apesar da boa intenção, quem diz isso ignora um detalhe importante: o amor breve também conta como amor, desde que seja profundo e sem ressalvas. Aprendi com meus cachorros.
Nesses tempos difíceis, a única coisa que me parece sólida é a fragilidade. Não consigo mais enxergar sentido na metáfora da semeadura, não acredito estar colhendo o que plantei. Estou mais para uma árvore que estala sob o mau tempo no meio de tantas outras árvores, dentro de uma área verde ameaçada por interesses escusos. Tentamos nos manter firmes, frondosas, alimentando passarinhos, torcendo para que nos espalham por aí, estação a estação, sem saber quando seremos atingidos por um raio, uma chuva ou uma motosserra.
Nem sempre o que nos mantém seguindo é a promessa que a vida presta. O que tem funcionado comigo é justamente o contrário, acolher a dúvida. Não encontro garantias de que as coisas vão melhorar, se passo muito tempo analisando o quadro, sou atingida pela tática poderosa da desesperança. É melhor não procurar saber muito se a vida presta. Preferi me ater a uma outra frase que a “Febre Fernanda” que se abateu no Brasil no início do ano me trouxe. Numa entrevista a Gilberto Gil, Fernanda Torres conta que planejava seu segundo filho quando aconteceu o atentado do 11 de setembro, em 2001. A dúvida que surgia era se, naquele momento, valia a pena semear qualquer coisa, que mundo estaria deixando para seus filhos, diante de um cenário tão desolador? Sua mãe, então, a Fernandona, a consolou com uma tão dura quanto bela verdade: “O mundo sempre esteve para acabar, Nanda”. Não adianta esperar ter a certeza que a vida presta para despejar no mundo as coisas boas que queremos receber de volta. Não é pela eternidade das coisas que construímos o agora, a garantia é justamente a inversa: sempre vai existir algo acabando, perecendo, se destruindo. Nos resta cuidar para que haja sempre algo que valerá a pena sentir falta, quando se for.
Pouco mais de um mês depois que Ravi partiu, o luto continua, entra baixinho pela porta que ele não gostava que ficasse fechada e se deita ao meu lado. O sol (Ravi, em hindu, a propósito) me chama lá fora e eu, como boa árvore que está precisando renovar suas folhas, preciso sair para vê-lo. Afinal, não há garantias de quando essa tristeza vai passar, só há garantias que haverão lutos como esse, desde que eu siga amando e cuidando de coisas que eu considero que valem a pena. Só sentimos a perda daquilo que um dia nos pertenceu. Se esse movimento natural da vida faz ela prestar ou não, só tendo (e perdendo) para saber.
Na mesma editoria luto e “o caba vai endoidjar, é?” recomendo a série “Morrendo por Sexo” na Disney+. São 8 episódios de meia hora que me fizeram rir, me emocionar e principalmente pensar no que realmente é importante e por qual razão deixamos para refletir sobre quando tudo se aproxima do fim. Depois me contem o que acharam. Até mais!
Vc escreve lindamente
Que texto maravilhoso! Perdi o meu Negão faz dois meses. Eu sei bem da sua dor. E sim, gostei demais dessa série que cita.
Parabéns por amar assim e escrever com ternura.