O Lance é Permanecer - 29ª Edição
Tudo indica que eu vou perder um pedacinho de mim. O desafio é permanecer mesmo assim.
Maio foi um mês especialmente difícil, mas cá estamos, finalizando ele. De cachorro doente a cadeira quebrada, o que fica de momentos assim é o quanto eu consigo permanecer sendo eu mesma e o quanto me vejo partindo, deixando pedacinhos de mim pelo caminho.
Existe uma chance ínfima que esse texto seja apenas um chilique. Enquanto escrevo, minha cadeira de rodas, que está comigo desde 2016, vai para o conserto nas mãos de um estranho. Um homem que nunca vi na vida mas que já me disse, logo de cara, que vai carregá-la escada acima até sua oficina. Gelei, claro. Se tudo der certo, vou ter mais sei lá quanto tempo com a minha querida Otto Bock A200. Um modelo que uso desde 2005. E depois disso, não sei mais. Cadeira-de-rodas não é igual a celular, que lança uma mais legal e avançada toda hora. O mais provável é você se adaptar a um modelo e rezar para que façam avanços bacanas, mas não a ponto de precisar de uma adaptação.
Ao que tudo indica, estão tirando esse modelo de circulação. Eu, que já tinha dificuldade de acessá-la porque não vende no Brasil, e das 3 vezes que a comprei foi em viagens internacionais, não sei como fazer para ter mais uma cadeira desse modelo que me acompanha há 20 anos.
Já futuquei vários sites, já me informei sobre a possibilidade de importação pela própria Otto Bock. Olhei jurisprudência para ver se rola de usar a isenção para produtos de tecnologia assistiva, mas só tenho recebido más notícias. No máximo, um tapinha no ombro, um “poxa vida, que chato!”, porque é algo complicado das pessoas compreenderem a gravidade. Para mim, significa pensar a vida daqui para frente sem algo que esteve tão intrinsecamente ligado a mim. Não é um mero objeto, é a forma que existo no mundo desde 2005 sendo modificada.
Falo isso até me sentindo meio ingrata, sentada numa cadeira de rodas motorizada Divinitá, com a qual eu tento me adaptar há um ano, quando esse cenário já se formava no horizonte. Foi, no mínimo, chato me dar conta de que um pedaço de mim vai deixar de existir porque meia dúzia de diretores, provavelmente sem deficiência, decidiram lá na Alemanha que aquela cadeira não era mais útil para eles. E assim como eu me acostumei com a perda de algumas funções, vou me acostumar com mais essa, mas está doendo para um caralho e restou vir aqui reclamar. Ainda sem me sentir 100% legitimada a viver esse luto.
Um desejo muito pulsante em mim é o da permanência. E isso não abrange só o de sobreviver, mas de estar no mundo de acordo com as minhas escolhas e planos. Não apenas sendo um sujeito passivo do que me deixam ser, mas alguém que decide o que gostaria de ser. Foi por isso que ressoou tão profundamente em mim um discurso de Madonna, sempre ela, na entrega do prêmio Mulher do Ano da Billboard, uns anos atrás: “A coisa mais controversa que fiz foi permanecer por aqui”.
Enquanto tudo no mundo nos empurra para um projeto de impermanência, de descartabilidade, a danada está aí há 40 anos sendo muito presente. Quando subiu no palco, em Copacabana, no início de maio, Madonna mostrou para o mundo o que é ser uma senhora de 65 anos rebolando a raba. Não para dizer que consegue, exalar jovialidade, negar os anos. O que eu enxerguei ali foi justamente o contrário, comparado às outras turnês dela que assisti. Hoje, Madonna dança como uma pessoa muito cheia de vida e saúde, mas com 65 anos. A coreografia faz os bailarinos dançarem junto com ela, está o tempo todo tocando e se deixando ser tocada. Adaptando a sua realidade algo que ela fez por toda sua carreira, que que sempre esteve pautada em explicitar, mostrar, nunca em esconder, suavizar. E aí está o grande lance de permanecer: ser vista.
Aí mora minha grande preocupação em não me perder enquanto vejo pedaços de mim sendo descontinuados. Seja o modelo da cadeira ou cantos da cidade que já desisti de ir, pela falta de acessibilidade. A noite de Salvador que cada dia mais torço o nariz e nem me animo em sair de casa, porque não me cabe, nunca me coube. Quanto do que nos tornamos no decorrer dos anos tem a ver com escolhas que fizemos e o quanto tem a ver com o que nos forçaram a abrir mão?
Num vídeo excelente que vi esses dias, a deputada federal Erika Hilton, musa maravilhosa, tem falas muito interessantes, vale a pena assistir. Mas o que mais me chamou atenção foi ela dizer que muito se alegra em ver a população LGBT a enxergando como uma diva pop. Que percebeu que estava se tornando cinza, que a política estava tirando o seu brilho, porque precisava navegar naquele espaço, ser aceita naqueles termos. Mas que o “tirar o brilho” da política tem a ver justamente com manter lá os mesmos ternos cinzas, pertencentes às mesmas pessoas. E afastar quem procura o brilho, quem não se reconhece naquele cinza. Então, ela poder ser uma diva pop cintilante lá dentro mostra como consegue permanecer em um espaço que não costuma receber pessoas como ela, sem precisar tirar de si nenhum pedaço. Ainda arremata o vídeo dizendo algo tão importante para aqueles que pertencem a certos grupos que tanto precisam se preocupar com esse permanecer, com não perecer: “sonho com a velhice, que eu chegue lá, que eu possa desfrutar desse lugar que para mim não era possível”. Tamo juntas, Erika.
Ainda assim, reconheço que é preciso tirar alguns pedaços nossos para permanecer. Por mais dolorido que seja, entender que abrir mão de certas coisas não é necessariamente abrir mão de si. É um processo longo e injusto, com o qual eu me deparo de tempos em tempos. Por isso, tomei uma atitude de desmanchar a cara de bicho que eu estava esses dias e vir escrever sobre esse pedacinho de mim que, provavelmente, terei que me despedir em breve. Preciso continuar trabalhando para me adaptar à minha cadeira nova, ou procurar outra que faça melhor esse papel, para que o fim de uma parte de mim não signifique mais do que é.
Vou aceitar os tapinhas no ombro, o contato de técnicos, as conversas e as distrações. É um processo, infelizmente, muito solitário esse de se despedir, de ver algo tão seu se desmanchando. E, para falar bem a verdade, já tenho tido contato com isso desde que decidi comprar uma nova, sabia que minha cadeira velhinha não iria lá muito longe. O que me resta é, depois de esbravejar e fazer biquinho, sentar cada vez mais firme na nova. E isso eu sei fazer. ;)
O texto a seguir ficou perdido meio inacabado no meio dos meus rascunhos e eu acabei publicando em forma de nota aqui no substack, mas como nem todo mundo usa o app, resolvi deixar por aqui também:
“Doutor Piri
Numa quarta-feira dessas que parece uma quina de sofá onde a gente bate o dedinho, eu precisei mexer em uns documentos e me deparei com o atestado de óbito do meu pai. Mesmo tendo revisitado esse documento tantas vezes nesses 23 anos, parei para lê-lo detalhadamente, sem nenhuma necessidade. Foi então que eu me surpreendi com uma risadinha minha, quando li o nome do médico que declarou o óbito: Piriandro.
Primeiro pensei o óbvio, que você também provavelmente pensou, não me deixe sozinha nessa: “que nome feio”. Depois, danei a chorar. Não tem muito o que explicar, é mais da esfera do sentir: é que meu pai me chamava de Piri. Às vezes, piri de Periperi, bairro onde a gente morava.
Senti como se tivesse encontrado um bilhetinho dobrado que meu pai deixou guardado no bolso de alguma calça, com alguma homenagem a mim. Como se, de alguma forma, o Universo quisesse que eu recebesse numa quarta-feira burocrática o lembrete de que eu fui muito amada. Muito estranho, porém, que esse bilhetinho tenha sido entregue assim. A homenagem veio sutilmente, escondida no nome do médico, enquanto a dureza estava tão brutalmente estampada no que dr. Piriandro atestou “causa da morte transfixação crânio encefálico por projétil disparados por arma de fogo”. Entendi como um mais um lembrete necessário: nem sempre o amor aparece quando estamos só olhando. É preciso estar com vontade de encontrar.
Quantas vezes passei os olhos para aquele papel, e quantas outras evitei encará-lo de verdade? Usando-o somente para o necessário e guardando. Precisou de uma tarde em que nada parecia melhor para fazer do que ler todo o conteúdo de um atestado de óbito de 23 anos de idade.
Achei atencioso por parte do Universo, mas nem precisava. O amor que um dia alguém sentiu por nós é sempre revisitado, quando somos amados de novo, por quem quer seja. Como um mapa, para o qual a gente olha para saber se está indo no caminho certo. Para o bem ou para o mal.
Porque, assim como o piri estava ali estampado, estavam as sensações que senti quando soube da morte dele. A sensação de que tudo pode se perder, como um dia já se perdeu.
A interrupção do amor, seja por morte, um término, uma distância, fica também gravada nos atestados que a gente tem e nos descobrem quando pensamos estar escondidas o suficiente desses eventos.
Quando estamos dispostos a amar alguém, e ser amada em troca, é preciso ter em mente que cada um tem sua história marcada por apelidos carinhosos e ferimentos, nem sempre assim tão evidente quanto deixou Dr. Piriandro. Há que se ter paciência consigo mesmo para observar o que nos faz sorrir e onde dói, torcendo pela paciência daqueles que nos encaram de perto.”
Eu farei um jeito de ir a Salvador no momento que você fizer o lançamento de um livro seu.
Você escreve de forma maravilhosa, e, ao mesmo tempo que consegue falar de assuntos espinhosos sem rodeios e filtros, expressando a sua dor em transformar pensamentos em texto, traz isso sem ser ácida, depressiva, grosseira, mas que nos convida a continuar lendo.
Meus sentimentos a você. Sim, são 23 anos. Mas luto não tem prazo de validade. Sempre dói. É uma ferida que fecha, mas não se cura de verdade, só cria a casquinha e a gente segue, tentando não fazer abrir novamente.
E de cadeira eu entendo. Não uso, mas minha esposa usa. E já são 24 anos lidando com cadeira de rodas, tenho um pouquinho de experiência.
Um beijo e um cheiro pra você!
Permaneça, querida Mila, e continue compartilhando os seus chiliques e a sua perspectiva. A sua escrita é linda.