Não adianta nem me abandonar - 23ª Edição
É bom não cansar de se procurar para não correr o risco de se perder.
Tudo bem com vocês? Está aí embaixo a 23ª edição da newsletter. Sempre uma alegria ver esse número crescendo, espero que gostem.
Fiquei sem minha cadeira de rodas motorizada por 40 dias, foi um período difícil. Além de todas as coisas que eu já dependo de alguém para fazer, precisar ser empurrada traz toda uma nova camada: a diminuição brusca da quantidade de tempo que consigo ficar só. Já costuma ser bem pouquinho, no máximo algumas horas, umas saídas em que alguém me deixa depois vai buscar, uns horários entre uma cuidadora e outra em que minha família não está. Dessa vez, ficar acompanhada quase o tempo inteiro teve um efeito interessante: sem a chance de ficar longe do outro, precisei encostar firme em mim mesma, para demarcar bem quem eu sou.
Eu andava meio esquecida de mim e percebi justamente nesses dias, coincidentemente, por conta dos indicados ao Oscar. Esbarrei sem querer na lista de 2022 e percebi que tinha assistido muito pouca coisa. Eu nem sou de seguir a premiação, guardo mágoa até hoje de Fernanda Montenegro perdendo pra aquela atriz naquele filme completamente esquecível (diferente de Central do Brasil reizinho que sempre será famoso). Mas gosto de usar os indicados para, quando quiser escolher um filme, preferir aqueles que está todo mundo comentando.
Passando os olhos pela lista, lembrei do que estava fazendo nessa mesma época ano passado: me apaixonando. Não foi bonito de lembrar, mas eu não tirei os olhos disso, como quem não tira os olhos de um acidente feio na estrada, quando passa por ele. Mas não é sobre isso que falarei hoje. (Achou que eu ia te chamar para ver descarrilamento de trem junto comigo? Não dessa vez.)
Não consigo comprovar se existe um nexo causal, mas eu suspeito que eu tenha me apaixonado porque eu me deixei esquecida um pouco no canto, sem supervisão. Uma paixão é também uma forma de deixar que alguém te diga, naquele momento, para onde olhar, o que gostar, o que te emociona e onde grudar. Seus olhos não precisam mais procurar, são capturados. Tomar as rédeas passa a ser inútil, o cavalo já trota em disparada. Fica fácil esquecer de seus hábitos preferidos, seus momentos de recarga emocional, você jura por Deus que só quem pode te dar qualquer dose de alegria é o sujeito amado. E por mais que seja dolorido, quando dá errado, é uma forma de descanso não ter o controle do que se sente.
Lembrei de quando montava, na infância. Tive um cavalo branco, extremamente bonzinho, chamado Gaúcho. Um bicho imenso, um gigante gentil. Meu pai sabia que para me carregar – que ele denominava carinhosamente de “carga de sabão” – tinha que ser um animal assim. Enorme, porque a depender do trajeto, meu pai montaria comigo numa sela especial que cabia nós dois. E manso, com uma marcha boa, para eu não me desequilibrar fácil e cair. Quando eu montava Gaúcho, às vezes, olhando o pasto e gesticulando muito, esquecia da rédea. Ela ficava ali repousando na nuca do cavalo, onde eu deixei, mas solta. Gaúcho sabia o que fazer, como se comportar, por onde ir, de maneira que pegar a rédea era necessário apenas de vez em quando durante o trajeto, sem muita preocupação ou vigilância.
Até que um dia, cai de Gaúcho enquanto ele estava parado, e quebrei o braço. A rédea não estava em minha mão. Estava desatenta, despreocupada, enquanto meu pai abria uma cancela para passarmos. Só senti o peso do meu corpo indo ao chão, a dor no joelho e o braço mole, que nem doeu na hora, apesar da fratura. Ninguém esperava que eu caísse ali, com o cavalo imóvel. Caí porque, como eu fazia, e hoje percebo que faço de vez em quando, tinha perdido um pouco a concentração em mim, carga de sabão que sou.
É que cansa ficar de tocaia o tempo todo, atenta, regulada. Tem hora que largar a rédea é tudo que se quer, apreciar a vista pura e simplesmente. Qualquer um esqueceria das rédeas com o cavalo parado e foi aí justamente onde eu caí. Ter que lidar com as consequências de ter caído– o gesso enorme, a coceira, a alergia que descobri a anti-inflamatório, as faltas na escola, o braço levemente mais grosso que o outro até hoje – poderia me deixar com a sensação que descansar, baixar a guarda, é um preço muito alto a se pagar. Mas ter caído enquanto estava parada, assim como se apaixonar, pareceu inevitável demais para justificar qualquer energia gasta em se vigiar o tempo todo. Provavelmente eu só estava tão cansada que, mesmo se me segurasse firme, perderia para a gravidade.
Minha vida depende de uma série de coisinhas, planejamentos, contratos, pessoas, hábitos que constantemente me roubam o gosto da espontaneidade, de sair por aí testando limites, sem pensar. Para fazer o que eu tenho vontade, eu preciso justamente fazer o que nem sempre tenho vontade. Exercer a minha liberdade, frequentemente, tem a ver com estar com as rédeas na mão, calculando minha rota. Preciso, por exemplo, planejar direitinho quem cuidará de mim se vou a algum lugar ou decido ficar em casa, se o lugar que vou tem acesso, se dá para encaixar um cochilo antes da cuidadora ir embora. Então, é justificável a minha estafa, essa vontade de descansar de ser eu, soltando as rédeas eventualmente. Minha rotina embola, me isolo de quem eu gosto, mesmo presente, passo a escolher mal meus hábitos e me puno, diminuindo a quantidade de coisas boas a que tenho acesso.
Mas quando eu precisei ficar tantos dias sem a cadeira motorizada, quis agarrar qualquer pouquinho de rédea que eu tivesse, por sentir a falta delas na minha mão. Ser empurrada pra lá e pra cá o todo todo por alguém, me fez querer exercer o máximo de liberdade que pude. Para isso, busquei a introspecção, me aproximei de uma Mila que estava um pouco empoeirada, esquecida no canto. Como eu estaria sempre com alguém durante esse tempo, teria meus horários delimitados por outras pessoas. Então, tratei de encaixar os melhores programas, encontro com amigos, idas a lugares de Salvador que eu nunca tinha ido, sem esquecer de ter uma rotina que tornasse tudo isso possível. Fiz questão de ocupar o tempo em que estivesse só com estar verdadeiramente comigo mesma. Voltei a ouvir minhas músicas, novas e antigas, assistir filmes, documentários, tudo que não me fizesse correr risco de me afastar de mim, na presença constante do outro. Como um amigo que vai contigo para uma festa em que ele não conhece ninguém, mas você conhece todo mundo, e ele diz “por favor não me deixa só aqui”, mesmo o lugar estando tão cheio que mal dá para se mexer.
Agora que minha cadeira motorizada está funcionando (mais ou menos) percebo que esse momento difícil me ensinou que é preciso equilibrar para não deixar a vigilância ser tão forte a ponto de partir a corda. Não exigir de mim tamanho controle que desemboque num cansaço que me faça me largar de mão. Estar atenta não precisa funcionar só para me tolher, nem deve ser feito sem pausa para uma água. Controlar as coisas é sim uma boa forma de me equipar com o necessário para realizar o que eu desejo. A minha habilidade em tomar as rédeas pode me ajudar a guiar as minhas vontades, éguas grandes e nada gentis, por pastos que sejam mais verdes, calmos e bonitos. Mas há que se ter como compromisso inadiável a busca pelo que eu gosto, observando o que eu já tenho e mirando no horizonte o que eu posso ter. Não deixar que o volume de demandas me force a negligenciar o que só eu posso fazer por mim. É fundamental estar atenta para não me abandonar, porque o mistério sempre há de pintar por aqui.
Que coisa mais linda é esse texto, Mila! Me tocou profundamente isso do convívio com nossa própria companhia ♡ beijos pra vc :*
sempre deslumbrada com seus compartilhamentos, a suavidade sem excessos que escreve é elegante e próxima de uma forma muito rara! obrigada obrigada obrigada