Gal, a cachorra com deficiência
Galga Costa, a galgo italiano de minha amiga, me ensina um punhado de coisas, mesmo sem querer.
Nessa edição eu falo de um serzinho muito querido, Galga Costa. Aproveito para anunciar que apaguei, com muita dó, minha conta no twitter mas estou no bluesky. Aquele site se tornou impraticável e achei o bluesky um canto mais sossegado, por favor, me procurem por lá. Mesmo user de sempre: milamesmo.
Um abraço e até a próxima!
Galga Costa, a cadelinha galgo italiano que foi parar nas mãos de minha amiga Maíra, foi a melhor ideia que tive nos últimos tempos, sem querer. Uma ideia que começou quando chamei Maíra para assistir um jogo da Copa e lhe apresentei Ravi, meu galgo italiano idoso, meigo e carismático. Naquele momento, fiz crescer nela a vontade de ter o primeiro cachorro da sua vida. Meses depois, mexi meus pauzinhos para que uma das cadelinhas que nasceram do casal de galgos do meu amigo Felipe fosse para Maíra, que estava disposta a criar uma diva com alcance vocal único, igual a sua xará, Gal Costa. Ela é uma maravilha: carinhosa, esperta, alegre, um pouco braba e tem uma deficiência visível numa das patas traseiras. É uma cachorra com deficiência, puxou a mim, que acabei virando sua madrinha
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Diferente da minha, no entanto, a deficiência de Gal não limita sua independência no dia-a-dia. As fisioterapias, sessões de laser, e demais cuidados de Maíra fizeram com que Gal se adaptasse bem, não parece sentir qualquer incômodo em ter a patinha contorcida, que não encosta no chão. Consegue descer e subir de qualquer sofá, cumprimenta a todas as pessoas e animais efusivamente, e vai te morder, não importa o seu tamanho, caso invada o espaço pessoal dela.
Eu havia avisado a Maíra que, por conta da deficiência de Gal, ela ouviria coisas capacitistas. Comentários clássicos, cobertos do maldito véu da boa intenção, que demonstrariam, sobretudo, pena. Pessoas a abordam para perguntar se é possível curar a patinha de Gal, revelando a velha vontade de exterminar o que é diverso, tirar das suas vistas a cena de um corpo deformado. Por ser uma amiga que convive bastante comigo, Maíra já era preparada para boa parte dessas interações. No geral, costuma explicar educadamente que Gal nasceu assim, que não sente dor e que, no momento, não há necessidade de cirurgia. Ao mesmo tempo em que não deixa espaço para que as pessoas opinem livremente sobre o corpo de uma cachorra que não lhe diz respeito. Mas a metralhadora de frases como “oh coitadinha” ou “mesmo estragada ela é feliz” não para logo, não importa a explicação. O que as pessoas querem mesmo é demonstrar o quanto acham deficiência uma coisa lamentável.
Inocentemente achei que por minha deficiência ser tão visível, quando eu estivesse passeando com Gal na minha cadeira de rodas, inibiria os que insistem em frisar que sentem pena da cachorra com deficiência. Errei feio. Como bem disse Maíra: do crente ao ateu, ninguém explica a necessidade que as pessoas têm de fazer comentários cheios de dó. Mesmo quando explicamos que é possível viver bem nesse mundo sem todos os membros ou funções, há quem ache que muito falta a Gal. Percebi que, quando opinam sobre a perna torta de Gal, não se importam se aquilo pode também depor sobre o que pensam de alguém como eu. Se acham ruim o estado de Gal, que é bem serelepe e danada, imaginem o que pensam sobre mim, que não tenho a mesma independência e mobilidade.
Acho que parte da necessidade que as pessoas têm de indicar que lamentam a deficiência de Gal vem da incapacidade que têm em conviver com suas próprias faltas. O olhar já está tão viciado no que lhes desagrada que são incapazes de usufruir da beleza de uma cachorrinha com deficiência contente. O quê o fato de Gal ser plena com o que tem diria sobre a inabilidade destas pessoas em conviver com o que gostariam que fosse melhor em si mesmas? Apontar a deficiência como algo tão lamentável reforça o quanto consideram que qualquer desvio é intransponível no caminho de se satisfazer.
Acho uma pena mesmo que as pessoas não consigam enxergar as potencialidades de seres diversos como Gal. Convivendo de perto com esta pequena, tenho aprendido muita coisa sobre mim. A primeira delas é que nada fica imune ao cuidado. Quando ela chegou, bem pequenininha, sofreu um acidente que quebrou sua patinha dianteira. Daí, além da deformidade congênita, Gal carregou por muitos dias um gesso que parecia maior que ela. Dia após dia, o osso foi sarando e Gal, incansável, seguia fazendo suas peraltices, confiando que estava protegida e bem criada. Essa experiência fez também com que Gal criasse uma certa proteção. Parece saber que se machucar é possível, já teve que se recuperar de coisas difíceis e, mesmo quando relaxada, está alerta e pronta para morder quem quer que pareça uma ameaça a sua paz. Pode parecer extrema a necessidade de Gal de reagir ao que nem sempre é ofensa,mas a história dela deve ser levada em conta. E o seu tamanho. Gal sabe que sai em desvantagem, então prefere logo impor limites para quem chega perto demais de um jeito que não lhe agrada. Uma mordidinha que não tira pedaço só para deixar o outro esperto que não pode passar dali.
Outra coisa que aprendi sobre Gal é que talvez sejamos muito obcecados por nossas limitações, debruçados sobre o que não podemos. O fato de Gal não ter noção de como deveria ser a anatomia correta do seu corpo faz com que simplesmente navegue pelo mundo como se aquilo fosse o habitual. As outras pernas funcionais encontraram o equilíbrio para realizar o que é preciso.“Corponormatividade, o que tenho a ver?’ ela diria, se soubesse. Enquanto somos bombardeados por tudo que não temos, por tanto “padrão” que seria ideal possuir, de acordo com nossa idade, status, gênero, etc, há pouco incentivo para encontrar o nosso jeito de existir no mundo.
O que podemos fazer com o que nos foi dado? Transferimos para as coisas que não estão nas nossas mãos a responsabilidade de melhorar o que sentimos sobre nós mesmos. E se for pessoa com deficiência, então, precisamos nos esforçar muito para não perder de vista o auto-valor, enquanto os outros têm tanta ânsia de apontar tudo o que nos falta. Assistir Gal me proporciona esse exercício de não cair nesse buraco de lamentação por faltas que não cabe só a mim eliminar. Quando somos vistos como coitadinhos, condenam nossa existência a um lugar de eterna busca, soldadinhos da superação. Enquanto frequentemente o máximo que fazem para diminuir essas diferenças é apontá-las. É importante não me esquecer de me conectar com tudo que eu posso e ofereço, quando não tenho aquilo que poderia ter.
Daqui de onde vejo, é muito legal ser uma cachorrinha com deficiência, desde que o entorno se responsabilize por cuidar do que é cabível cuidar, sem enxergar que a eventual falta de nossas pernas (ou braços, ou visão, etc) justifique um lugar de eterna desvantagem. Mas, ao lamentar tanto o que nos falta, nos transferem o peso de ter algo a menos. São poucos os que permanecem para, com a convivência, saber o que nos falta de fato e no que somos abundantes, transbordamos. Quem convive com Gal, e se preocupa que esteja atendida em suas necessidades, não lamenta a vida que ela leva, pois sabe que está bem, usufruindo das coisas do jeito que é.
Esses dias escutei que eu sou muito corajosa, uma característica que costumo ressaltar em Gal. E tudo que fiz foi sair de uma situação em que me encontrava parada na porta, esperando um convite para entrar. É uma habilidade comum entre nós, pessoas com deficiência, saber a hora de entrar e sair em certos espaços. Observo isso quando Gal quer subir em meu colo e pede para que eu encoste no sofá, de onde consegue passar até minha cadeira. Insistir em subir diretamente do chão só a cansaria, assim como me canso ao tentar entrar onde não me cabe. É bem frequente que, nos espaços físicos, a entrada para pessoas em cadeira de rodas seja alternativa, pela lateral, uma rampa escondida, às vezes até trancada. A mesma lógica se apresenta em muitas das nossas relações, nas vagas de emprego, na mídia: entramos na vida afetiva através de relacionamentos que nem sempre são denominados ou públicos; entramos nos cargos por cotas; entramos na tv por programas assistencialistas ou reportagens que repetem estereótipos. Uma vez lá dentro, procuramos a acessibilidade para cumprir nossa função no emprego, o afeto que nos foi prometido, ou a frase de efeito que irá chamar atenção do telespectador que nunca pensou em nossas demandas.
Nem sempre é o conforto de um sofá que nos faz passar para o patamar que desejamos, como Gal faz. Ter deficiência é estar sempre pensando meios para adentrar nos lugares sem que isso seja um peso insustentável para nós, esperando que possamos, ao menos, dividi-lo com aqueles que entram com facilidade. Até que nos seja dada a oportunidade de entrar pelas portas da frente, sem qualquer forma de pedágio ou entrave, seguiremos sendo alvo de frases que evocam pena, destacam nossas faltas e ignoram nossas conquistas.
Maravilhosa a edição! Delícia de texto 🧡
obrigada por isso ❤️