Newsletter @milamesmo 12ª Edição
Essa edição tem uma dica de filme e uma história bem pessoal sobre a minha escoliose, desde o diagnóstico até a cirurgia, que aconteceu em 2012. Não tem nem palavras pra dizer o quanto eu agradeço por ter esse espaço aqui pra falar de mim e o quanto vocês são bons em me incentivar com isso. Espero que gostem, até a próxima!
#descrição: Separador de texto com a ilustração do rosto de uma rodela de limão em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Eu costumo assistir filmes que já vi, quando estou me sentindo só. É como se arrumasse naquela história, naqueles já conhecidos personagens, uma companhia. Trago na memória sobre qual assunto eles vão conversar comigo e dou o play esperando ser levada para um lugar que eu já sei que é quentinho.
Nem sempre acontece o esperado e o filme, visto em ocasiões diferentes, toma outro rumo na minha mente. É aquela velha história de que uma pessoa não se banha no mesmo rio duas vezes. Foi assim com a Mila que assistiu o filme "The 40 Year Old Version” na Netflix, uns meses atrás, e a que assistiu esses dias de novo.
O filme é uma comédia dramática - eu nunca sei definir bem - autobiográfica de Rhada Blank, que conta a vida de uma dramaturga beirando os 40 anos que resolve se arriscar no mundo do rap, rimando sobre como é uma mulher em sua faixa etária, enquanto tenta se provar ser a dramaturga premiada que um dia foi. (Agradecimento especial a Cintioca, que me indicou esse filmão que já roubou meu coração).
O primeiro banho de rio que tomei ao ver o filme, eu foquei no tema ajuda. Sobre entendermos o que é pedir e retribuir essa ajuda e como ela pode ter muitas caras e disfarces. E a falta dela, também. Cheguei a esboçar um rascunho e deixei pra lá.
Fui ver o filme de novo, como falei, pra me aquecer num lugar conhecido e dessa vez o que ecoou foi a voz de Radha e seu enorme desejo de ter sua voz escutada, mas com o freio de mão puxado pelo receio de ter sua versão completamente contaminada pelo que os outros esperam dela. Cansada de ver que as histórias de pessoas negras que emplacam tinham sempre aquela áurea de “poverty porn”, traduzido no filme como objetificação da pobreza, Radha temia que a sua peça também sofresse modificações até que se encaixasse na narrativa imposta pela branquitude. A mais comum, talvez a mais vendável: a de pessoas negras sendo retratadas sob o mesmo viés de sofrimento e perda.
Penso que essa ideia conversa muito comigo, no que diz respeito ao aviso de freio de mão puxado que ainda acende no visor da minha escrita sobre a minha deficiência. Exausta de ser empurrada para o lugar de vítima, constantemente me vejo desestimulada a contar minhas histórias, por medo de ser colocada nesse cantinho de mais prejudicada pela vida. A linha tênue entre denunciar o que está errado e reforçar a ideia de que somos “seres miseráveis”, cuja vida só tem sofrimento. Estacionar na ideia de que tudo relacionado à vida das minorias é ruim, de certa forma, retira dos ombros de quem está nas classes dominantes a responsabilidade de nos tirar desse patamar mais baixo. É como se houvesse um gozo em saber que tudo está como se deve: o de cima sobe e o debaixo, desce. (bom xibom xibom bombom).
Quando criei o boramesmo, página que mostra lugares acessíveis de Salvador, no instagram, eu tinha a intenção de não ter um tom denunciativo. Não que eu não saiba o tanto de coisa errada que há na falta de acessibilidade, mas minha intenção era mostrar mais as possibilidades. Justamente para não cristalizar essa ideia de que não tem jeito, que “Salvador é assim mesmo, difícil, inacessível”. Tanto que, durante a pandemia, eu tomei a difícil decisão de deixar a página quieta lá. Não busquei formas de mantê-la ativa, por mais que eu visse outros perfis criando alternativas, porque não queria contaminar a página com a grande agonia que estava sendo viver longe de minha cidade.
Das impossibilidades, eu já sei. E a maioria dessas impossibilidades, qualquer um que esteja minimamente atento, também sabe. O que eu pretendo, e não vejo a hora de retomar, é acender a vontade de conhecer aqueles cantos que se prepararam minimamente para gente como eu. Não como se tivesse dando um biscoito, mas incentivando pessoas como eu a experimentar o que for possível, nessa cidade que também é nossa.
Tem sido um desafio para mim, como foi para Radha, contar minhas histórias de forma livre, sem servir a essa estética de dor que empurram para as minorias, mas também sem deixar de denunciar o que acontece de errado.
É uma linha muito tênue, essa de estar atento às nossas mazelas e a de não servir ao papel que nos reservam: o de eterna vítima. É muito comum que esse tom contamine todas as nossas narrativas, talvez até numa busca por acolhimento e, quando nos damos conta, estamos alimentando uma visão construída pelo outro sobre nós. Por outro lado, não podemos nos furtar de contar sobre aquilo que nos afeta.
O caminho encontrado por Radha, foi o de fazer rap, rimar sobre sua vida de mulher beirando os 40. Ora divertido, ora rasgante, mas sempre com sua marca, sua assinatura. E eu só espero que eu tenha sempre um lugar onde possa equilibrar falar das minhas coisas, sem alimentar estereótipos.
Para ilustrar, trago o texto a seguir, que ficou guardado muito tempo, pela falta de coragem de expor algumas das coisas que vivi, para não reforçar uma visão de pessoa sofrida que tanto querem imprimir a pessoas como eu. Uma hora precisava sair, essa que, para mim, é uma história com final feliz. Eu, minha coluna e personagens queridos que me salvaram também em outros momentos da vida. Não quero ter que deixar de contar, afinal, se não eu, quem mais contaria?
#descrição: Separador de texto com a ilustração do rosto de Mila em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
A curva
O verdadeiro início dessa história não se sabe bem quando é. Como boa parte das coisas grandes que nos acontecem, começou silenciosamente. No meu corpo de criança com amiotrofia espinhal, aos 10 anos, o olhar clínico de minha mãe, pediatra, passou a enxergar uma curva nas costas.
O termo técnico é escoliose, um desvio na coluna. Não seria o primeiro dos muitos nomes feios a que eu fui apresentada, desde cedo. Parte por ter uma deficiência desde que me entendo por gente, parte porque minha família é cheia de médicos e de vez em quando passa uns desses termos para lá e para cá, como o açucareiro na mesa.
Um ombro mais alto que o outro, a alça do maiô folgada de um lado e eu via o olhar firme e doce de minha mãe preocupado. “Vamos ao médico”.
No consultório, pareceu que eu deixei de ter 10 anos. Dr. José (vamos chamá-lo assim, não é seu nome verdadeiro), ao me examinar, carrancudo, disse: “Aí só cirurgia. A gente pode tentar usar um aparelho, mas não vai melhorar, não. É só para segurar. Tem que operar, mas a cirurgia é perigosa. Pode morrer, pode paralisar, a curva não é pequena, por isso só operando”.
Da minha reação imediata, sinceramente, eu não lembro. A memória vívida foi das palavras e a forma como foi dito, de modo que ressoou por 15 anos. Nem pensar que eu ia fazer uma cirurgia em que eu poderia morrer. Era inconcebível para mim que eu pudesse fazer qualquer coisa do tipo, eu mal tinha começado a viver, faltava tanta coisa.
Experimentamos, então, um colete ortopédico. Logo o mais difícil, de cara: Milwaukee. Basicamente, um anel circulava o pescoço, uma barra de ferro descia por entre meus seios que já cresciam, preso a uma peça de fibra que abraçava a barriga, maleável o suficiente para ser possível vestir. Finalizava com fivelas que ajustavam com uma almofada axilar. Não daquelas almofadas fofas de sofá, mas uma que vestia o braço e puxava o corpo para o lado oposto ao desvio.
De tão insuportável que era, não demorou para procurarmos outros meios. Primeiro, um outro médico, o tal do José, nem pensar, nem pintado de ouro, eu bradava. Aquele homem que esqueceu completamente que eu era uma criança e despejou em mim, sem rodeios, que algo grave e inevitável me aguardava. Naturalmente, o próximo médico, dr. Eduardo, seria o oposto: bonzinho, brincalhão que, convencido por mim que cirurgia estava fora de cogitação, foi me apresentando outros coletes ortopédicos, feitos por um mago das próteses, de quem virei fã: seu Ferreira.
A cada problema que um colete apresentava, com intervalos variados de tempo, ele se reunia com minha mãe e pensava em soluções. Assim a gente foi acertando os pontos até que se chegou em um mais suportável. Um quadrado de ferro forrado que abraçava a coluna, fechado na frente por uma capa com fivelas, que amassava os seios que já não eram de menina a essa altura. E lá se foram 15 anos.
Eu parecia ignorar a inevitabilidade da cirurgia, apresentada a mim aos 10 anos. Mesmo com as marcas do uso de um colete que já não cabia, uma curva que só se acentuava, dores nas costas, nos rins. Um corpo todo que tentava trabalhar para compensar o que acontecia.
Até que meu irmão, numa de suas habituais conversas que misturam o cuidado do médico que ele é, com a ênfase e sinceridade de um irmão mais velho, me disse:” já está na hora de você rever essa decisão. Você tinha 10 anos, hoje tem 25. Seu corpo, as técnicas cirúrgicas, os profissionais, nada é como era antes. Pacientes tem chegado para mim na UTI operados de um ortopedista excelente, saem de lá ótimos, você também pode.”
Num primeiro momento, me bateu como um grande aborrecimento. Não era possível que isso ainda viesse à tona, eu pensei que eu podia ignorar que minha coluna se dobrava tanto daquele jeito, podia fingir que não tava machucando, podia mentir para todo mundo que estava bem. Mas aparentemente eu tinha quem me olhasse, me cuidasse, e já não era suficiente que eu me mantivesse do jeito que estava.
E então veio o medo e um passo de cada vez eu fui me aproximando dessa ideia. Primeira coisa, conhecer o tal do cirurgião que operava colunas, dr. Sérgio. E só podia esperar que a primeira impressão fosse oposta àquela primeira, que assustara a menina de dez anos. E foi justamente assim, dr. Sergio me escutou sobre o que significava aquela cirurgia para mim, todos os receios e o atraso em procurá-lo, enquanto me explicava o que significava fazer cirurgias como a minha e que eu não precisava me explicar sobre o tanto que precisei esperar para estar pronta.
Antes que eu pudesse decidir se faria mesmo uma cirurgia tão extensa na coluna, precisava ter certeza que meu corpo aguentaria. Capacidade respiratória, osteoporose, anemia e cobertura do plano de saúde. Várias pendências a serem enfrentadas, não sem medo, mas que surpreendentemente deixava mais claro que operar era o meu desejo, afinal. Parece que algumas etapas que parecem nos distanciar do que queremos servem para referendar decisões que ainda não conseguimos ver como legítimas.
Enquanto essa preparação se arrastava, eu tentava viver minha vida como se não estivesse indo fazer algo que eu temi por tanto tempo. Não sabia se era intuição ou receio, mas por vezes um péssimo cenário se materializa na minha mente. Eu espantava rápido como se quisesse que não se tornasse um presságio. Vendi e comprei uma casa. Viajei com a família toda. Fui com roupa de casa, atendendo a um convite repentino para o cinema. Parecia que eu estava querendo viver tudo que eu podia. Semanas antes da data marcada pro internamento, tive uma gripe depois de pegar chuva no show de Madonna. Seria um sinal ou eu daria conta de operar?
Antes que eu pudesse mudar de ideia, me recuperei. Tive certeza que estava pronta. O dia chegou e eu estava mais eufórica que com medo. Da sala de cirurgia, lembro de alguns segundos da voz de dr. Sérgio, enquanto o anestesista falava que ia me colocar para dormir. Dali em diante, lembro só que acordei quase dois dias depois, sentindo a extubação, já na UTI.
A sensação de estar viva, passado o desafio maior das 13 horas de cirurgia, foi incomparável a tudo que já vivi. Ainda que eu sentisse os analgésicos funcionando como uma cortina de plástico, onde eu via a dor do meu corpo, mas não conseguia tocá-la, era como se eu tivesse sido mastigada por algum ser sádico bem maior que eu. Tinha hematomas por todo corpo, pontos na coluna, marcas de ter sido fixada à mesa cirúrgica na testa e nas coxas.
Animado, como sempre, dr. Sergio foi até meu leito explicar que a cirurgia tinha sido um sucesso, apesar da fratura que acabou acontecendo durante a colocação de um dos 26 parafusos. Por ele, eu sairia em três dias, mas o intensivista estava preocupado com uma dificuldade respiratória que apareceu depois do tempo que fiquei entubada.
Os três dias viraram nove. Uma infecção respiratória não queria me deixar ir para casa. Fisioterapeutas, sempre eles, me salvando, entravam no quarto dispostos, a cada par de horas, para me aspirar. Depois, experimentar ficar sentada de novo. Um pouco mais de força para conseguir abrir a boca e comer. Cada tarefa vencida com uma mistura de gratidão pela ajuda e por estar viva, com uma dúvida amarga sobre se teria que ser sempre tão difícil. Se eu teria feito o certo.
Mais um colete será necessário, o último de muitos que já foram. E seu Ferreira é convocado mais uma vez para fazer uma de suas mágicas, dessa vez no leito hospitalar. Rolos de gesso e bacias se desenrolaram naquele ambiente tão asséptico, sob os olhares desconfiados das enfermeiras, “quem já se viu uma coisa dessas na UTI?”. Mas era preciso, a coluna tinha recebido muita coisa e a fratura indicava que ela estava frágil demais pra sair dali sem uma sustentação, uma garantia.
Profissionais se revezavam para fazer acontecer cada uma das novas coisas que, parecia, eu tinha desaprendido. Mastigar, engolir, sentar, não pender o pescoço pro lado do acesso. Até meu coração batia esquisito, sempre rápido demais, os plantonistas não conseguiam ter a tranquilidade para me deixar ir embora.
Até que, véspera de Natal, nove dias depois da minha entrada no hospital, meu irmão entra em cena, mais uma vez. “Você já está bem, não vão te tirar daqui porque não estão seguros por conta de seus batimentos. Na minha opinião, você só vai ficar boa em casa, aqui tem risco de pegar outra infecção. Vou assinar sua alta a pedido”. A essa altura, eu tinha ganhado a habilidade que mais parecia distante da minha capacidade: entregar o controle da minha vida, do meu corpo, a tanta gente. Profissionais me guiaram a vida toda, mas eu achava que, com isso, havia aprendido o que era melhor para mim. Ali estava eu, novamente, entregue, restando apenas a possibilidade de confiar.
Pensava que em casa não ia ter analgésico na veia, mas teria cachorro. Não ia ter monitoramento, mas ia ter comida de mãe. Não ia conseguir ficar sentada, mas teria música. Não conseguia dizer ali o que realmente tinha perdido e o que tinha conquistado, só o tempo ia dizer. Voltei para casa com a certeza que a menina de 10 anos não tinha como ter: que eu era mais forte do que imaginava. Com as pessoas certas, dedicadas a seu propósito e sensíveis ao seu redor, pode-se contornar muitas curvas pelo caminho.