Newsletter @milamesmo 11ª Edição
Essa edição está especial para mim porque eu resolvi gravar os textos em voz e disponibilizar no canal do telegram. Se quiser me ouvir por lá, se inscreve nesse link: t.me/milamesmonews
Já adianto que aceito críticas e sugestões, estou experimentando e esse foi um jeito que eu achei para dividir com aqueles que as vezes preferem ouvir algo do que ler, como eu aprendi com a maravilhosa Carla Soares, do Outra Cozinha, que me apresentou essa forma de espalhar conteúdo.
Ando meio devagar na escrita, mas nessa edição mesmo explico um pouco sobre meus motivos e também tem um texto sobre o capacitismo como um bicho peçonhento. Espero que gostem e até a próxima!
#descrição: Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Aquele cheiro de novo, o mesmo zumbido, conheço esse bicho, ele já me picou. Dou uma espalmada no ar, tentando espantar, Deus me livre ser picada de novo por esse aí. É por isso que eu ando de calça, bota, repelente e chapéu. Vez ou outra, acendo até uma vela que me venderam na feira dizendo que espanta. Esse bicho capacitismo morde de dia e de noite, fora e dentro de casa, bicho escroto, não sei porquê existe.
Aí, porra. Era ele sim, senti a picada. “Não, não foi nada”, me disseram: “Foi outra coisa, não teve nada a ver, talvez um maruim.” Não, não, foi mais para mutuca, retruco. Dói feito picada de mutuca. Antes fosse, mas foi esse desgraçado mesmo. Mais uns passos dentro do mato, onde a gente mata um leão por dia, e começa a formigar o lugar. Pensei que não doeria dessa vez, mas está ardendo.
Se eu parar para olhar a picada, vai ser pior. Vou ter certeza que foi ele quem me picou, vou ter que responder, parar, ser assertiva, mais uma vez, apontar onde dói. Será que alguém pode, ou melhor, será que alguém vai fazer alguma coisa? Agora já foi, ele já me picou. Cabe a mim seguir com isso latejando.
“Não deve ser isso, impressão sua. Essa febre e esse desconforto que você vai sentindo, você está exagerando, deve ser o calor dos dias, ou a umidade, a mata ou 'iih, já menstruou esse mês?'”: coisas que periga eu ouvir a cada vez. E quando eu sei que foi o capacitismo, será que vale a pena nomeá-lo? Vai ver que o bicho quando pica nem sabe que tem esse nome. Ou só disfarça que não sabe quem ele é. Até outro dia, nem nome tinha. Foi parar recentemente nos livros, documentado pelos pesquisadores que caminhavam nos mesmos cantos que eu caminho, e que sentiram seu zumbido a vida toda, mas ainda não sabiam como chamá-lo. E se você não anda nos matos que eu ando, junto às pessoas com deficiência, você nunca vai vê-lo, muito menos ser picado. E pode até passar a vida toda sem saber, não é como se o mundo fosse te cobrar pelo seu desconhecimento. Pode seguir fingindo que ele não existe, engrosse o coro dos que dizem que não foi nada.
Quanto a mim, não posso ignorá-lo. Tem vezes que ele me pica é na cara, todo mundo vê, fica feio, incha logo, nem preciso apontar. Em outras, ele me pica por debaixo da roupa, que eu achei que me protegeria. É atraído com seu ferrão até mim, mesmo com todos os repelentes que eu, privilegiada, consigo passar. Essas ferroadas quando ninguém vê, é só eu e eu sozinha, ardendo em febre, corpo queimando mas seguindo. Se tenho saco, insisto que foi ele sim, que eu senti o cheiro, que tem até um gosto amargo, mas será que tem serventia essa insistência?
Faço porque acho que a dor melhora quando falo, talvez um efeito psicológico. Eu sinto que ele não gosta quando eu faço barulho, é como se denunciar que ele está por ali o espantasse. E se, ainda assim, ele vem, eu que me esquente até a dor passar enquanto sonho com o dia que alguém invente um jeito do meu couro ficar tão grosso a ponto dele não conseguir me perfurar mais.
#descrição: Separador de texto com uma ilustração de ondas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Dia desses comentei com minha amiga Lourdes que minha escrita é de dondoca. Eu preciso de tempo livre, de metaforicamente bater perna como se a vida fosse um shopping. E imediatamente me encolhi de vergonha, antes que o som da gargalhada de Lou ecoasse no áudio do telegram: “é isso!”. Enquanto ela ria, em mim foi se desfazendo o constrangimento que eu senti logo após minha constatação.
Por muito tempo, senti que estava errado escrever no ritmo em que escrevo. Primeiro, porque a gente é acostumada, lá no começo, a produzir em 100 minutos uma redação para escola e mais tarde responder a prova discursiva na faculdade. Onde moraria a graça de escrever? Só via a serventia se fosse como a resposta para um questionamento do outro, objetiva e rápida. Mas e quando o que eu pretendo responder vem de mim? Há que se considerar que são dois trabalhos, nem tão objetivos assim: o de se perguntar e o de responder.
E isso é completamente incompatível com a minha escrita de dondoca, que passeia muito por aí e tira incontáveis soninhos de beleza. Mesmo sendo algo que eu tanto gosto, por que não fazer logo de uma vez, em abundância, como quem não tem tempo a perder, noite e dia como se precisasse disso para sobreviver? (pegou a referência a Hamilton?).
Mas o universo, esse que escreve o dia todo e não deixa ninguém ler, disparou uma série de sinais para que eu olhasse com mais carinho para meu tempo na escrita. O primeiro deles veio justamente de uma das pessoas que mais admiro nessa internet, Carla Soares, do Outra Cozinha. O principal ingrediente do seu conteúdo é o convite a olhar a vida em um ritmo diferente, usando todos os sentidos para absorver o que está ao nosso redor. Conheci primeiro seu trabalho falando sobre plantas comestíveis, mas descobri um conteúdo que nos convida a ver um mundo mais saboroso, colorido e sereno. Para Carla, não devemos apenas seguir o bonde, sem parar para pensar no que estão nos fazendo consumir. Da comida disponível nos supermercados aos posts que chegam pelo instagram, já parou para pensar na forma como te entregam coisas sem muito respeito ao tempo delas? Frutas sazonais disponíveis o ano inteiro e conteúdo a rodo jogado na timeline só para não sumir do radar, precisamos mesmo disso ou podemos experimentar outras formas de degustar as coisas, cada uma em sua hora?
Falando um pouco sobre uma espera a qual andamos meio desacostumados ultimamente, Carla tratou sobre seu processo criativo na carta mensal que ela, tão docemente, entrega a seus apoiadores no apoia.se/outracozinha. Eu sou uma dessas pessoas que apoiam seu trabalho e um trecho especial da carta me tocou:
“Pra conseguir fazer o trabalho criativo, a gente precisa desse tempo quieto. É no tempo entre a observação e a ação que acontece a criação. Nesse tempo é que se cozinham de fato os ingredientes bonitos que a gente viu na feira”
Soava quase como uma indireta para mim, que tão frequentemente me vejo desqualificando o tempo que gasto preparando o que quer que seja que eu tenha que fazer. Especialmente na escrita. Entendo (e julgo) como um soninho de beleza, mas na verdade estou à beira do fogão, cheia de palavras no fogo, mexendo.
Na mesma pegada, caiu no meu colo outro sinal do universo vindo de alguém cuja escrita eu muito admiro: Fatine Oliveira, mulher com deficiência, mestranda e criadora do blog e página no instagram Disbuga. Em nossas conversas, me impressiona a forma como Fatine consegue ser didática e generosa em suas explicações e até nos desentendimentos. Ao tuitar sobre a forma como escreve, falou também sobre respeitar o tempo de cada coisa:
“Antigamente fritava horrores quando não conseguia evoluir na escrita, até conhecer o que hoje chamo de "cozimento das ideias". Quando você empacar de vez, deixa o texto "em fogo baixo" e vai elaborando os outros ingredientes. Pega uma música, vê um episódio de sua série, um clipe, o que for. Depois você volta, dá uma lida, prova o texto para ver se precisa de mais "tempero" e vai mexendo. Não pode deixar de mexer, senão passa do ponto. Quando perceber já está pronto.
Fica ótimo para servir os amigos e orientadores.”
Desse trecho, retirei não somente a lembrança de que é preciso respeitar o tempo de cozimento de cada coisa, mas principalmente que eu escrevo para que as coisas não passem do ponto aqui dentro. Percebi que, sem cuidado, muita coisa pega no fundo e pode não ser possível salvar sem deixar aquele gostinho meio amargo.
E que dá para fazer muita coisa nos intervalos do tempo de preparo. Que talvez a dondoca, a gente não sabe, deixe algo marinando enquanto passeia por aí. Ou está à procura dos ingredientes certos para fazer algum prato diferente. E melhor: ainda que eu seja mesmo uma dondoca passeadeira quando o assunto é escrita, desde que o resultado seja se manter escrevendo, não há nada de errado nisso.