Newsletter @milamesmo 9ª Edição
"Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais."
Eduardo Galeano
Percebi, tarde demais, que eu havia chamado duas edições da newsletter de oitava. Reflexo do fevereiro miserável que tive, cês façam o favor de me perdoar. Quando eu, chorosa, disse a Ieska que eu errei, ela disse que o número 8 tinha algo a ver com o infinito e talvez Fiona e (e eu adiciono a amizade que tenho por Ieska) tivesse algo a ver com esse ato falho. Agora, sim. Sigamos com a nona edição, que fala do documentário sobre Britney Spears e da necessidade de apontar o capacitismo, um texto sobre o está ocorrendo aqui dentro de mim e por último, uma carta de minha amiga mais que amada, Cintia: advogada, mestre em políticas sociais e a principal responsável por eu não perder a linha nos últimos 10 anos.
Espero que tenham uma semana acima da média. Eu adoro saber o que vocês estão achando, então fiquem à vontade para responder esse email.
#descrição: Separador de texto com a ilustração de um diamante em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Assisti ao documentário produzido pelo New York Times, disponível no globoplay, “Framing Britney: A Vida de Uma Estrela”. Trata da vida de Britney Spears e de como uma sucessão de assédios da mídia, questões familiares e negligência com a saúde mental culminaram em um processo de tutela bem atípico que, atualmente, é denunciado por fãs e familiares como algo preocupante.
Através do movimento #FreeBritney, fãs ganharam atenção do mundo todo ao questionar a continuidade da tutela nos termos em que está. Apesar de ter passado os últimos anos em um grande ritmo de trabalho, Britney pode estar sendo privada das liberdades mais básicas e sem acesso a sua fortuna. A cantora foi ao tribunal declarar sua vontade de retirar o seu pai, Jamie Spears, do papel de tutor, alegando estar insatisfeita com o grau de restrição e falta de transparência.
O movimento serve de alerta não só em relação ao processo da cantora, individualmente, mas do quanto esses institutos jurídicos precisam ser bem observados pela sociedade, para que não se tornem ferramentas para abusos, sob a proteção da lei. O processo corre nos Estados Unidos e cada país tem suas normas sobre o assunto, frequentemente bem desconhecidas pelo público. Até mesmo advogados costumam confundir os diferentes tipos de incapacidade, deixando o assunto para uma parcela muito pequena de especialistas. Esse desconhecimento tem consequências perigosas. Estima-se que só nos Estados Unidos há 1 milhão e meio de pessoas sob tutela, mas o número é incerto pois, pasmem, não há sequer um levantamento oficial. É uma arma fácil para manipulação tudo aquilo que não é bem conhecido, abordado.
Enquanto assistia ao documentário, pensava em milhares de pessoas com deficiência, com transtornos psiquiátricos e idosos que podem estar passando por casos semelhantes ao de Britney. E com chances mínimas de receber atenção dos órgãos de proteção ou de outros familiares. E, por mais de uma vez, pensei se esse sentimento de “isso podia estar acontecendo comigo” acompanha a maioria dos espectadores. Após seu conhecido surto e as internações que se seguiram, a mídia, e isso não só o documentário mostra,mas eu lembro da época, fez foi muita graça com o assunto. Geralmente, tratando como um problema individual, talvez decorrente da fama, da pressão da mídia. O corriqueiro hábito holywoodiano de diferenciar suas estrelas, para o bem e para o mal, retirando delas os traços em comum com o resto do mundo faz com que haja uma dificuldade de se relacionar com a situação.
Ao retratar a batalha jurídica e familiar enfrentada por Britney, é preciso ligar a algo que é muito maior, dar nome aos bois: Chamar de capacitismo. Essa desumanização, esse descrédito dado a Britney, uma vez que ela ficou num estado onde não teve capacidade de praticar os atos da vida comum. Ainda que com sua capacidade de trabalho restaurada e demonstrando descontentamento com os rumos tomados pelo seu tutor, não consegue mais ser vista no mesmo patamar que antes. Mesmo reunindo todos os elementos que poderiam ajudar a retomar, aos poucos, as rédeas de sua vida, ela segue segregada, restrita, agora com o aval da Justiça.
Ao ver o desenrolar daquele drama pessoal, senti que falta trazer a ideia de que não é algo para se preocupar individualmente. Quando uma tutela apresenta irregularidades, incongruências e precisa ser revista, de que forma o sistema judiciário está respondendo? Há medidas realmente eficazes de fiscalizar a lisura desse processo, ou é mais um desses casos em que, uma vez que o indivíduo é colocado, fica esquecido por quem está de fora? É como se existisse uma parede de vidro, de onde assistimos Britney. E em toda parede de vidro, se olharmos bem, por mais limpa que esteja, dá para ver um pouco do nosso reflexo, se prestarmos bem atenção.
Para mim, qualquer um, a qualquer momento, pode ocupar o lugar de Britney. Ainda que sem o dinheiro e a notoriedade. Qualquer um pode ter sua liberdade e outros direitos arrancados de si, indevidamente, por conta de um surto, de uma deficiência ou pela idade avançada. O processo de tutela busca proteger o indivíduo em seu estado vulnerável, em situações específicas mas, para isso, é necessário estar atento a todas as etapas e a eventuais mudanças no estado mental do tutelado. Uma sociedade que costuma escantear qualquer um que esteja vivendo fora de seus processos ditos “normais” deveria se preocupar mais com entender como não reforçar esse ciclo de exclusão. Sempre que uma questão sobre transtornos psiquiátricos, envelhecimento ou deficiência é varrida para debaixo do tapete, perdemos a oportunidade de procurar alternativas para consertar os estragos que o capacitismo faz todo dia, impunemente. Seja numa garota americana perfeita no auge de sua carreira ou em algum desconhecido no interior mais remoto de um país qualquer.
#descrição: Separador de texto com uma ilustração de ondas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Eu me deixei cair nessa ideia de que os dias andam iguais. Abraçada a uma rotina meio frágil, achei que apenas repetir quem eu sou dia após dia, não demandaria muito esforço. No centro dessa rotina, enquanto estivesse passando meus dias na praia, estaria a piscina, limpa e cristalina. Enquanto fizesse sol, bastava calcular a hora certinha que faz sombra, nem muito antes nem depois do almoço.
Piscina eu conheço, pensava eu. Está tudo nos conformes, basta respeitar o horário que liga a bomba, os produtos diários, a quantidade de tempo filtrando. Esqueci que, uns dias depois, estaria turva. Não suja, nem impraticável. Aliás, num dia de sol mais quente, se preciso fosse, ainda daria para contar com a piscina, ainda que bastante turva. Assim como eu que, em meio a essa tentativa de rotina, sigo. Não sei dizer desde quando estou nesse estado, nem quanto tempo se passou desde a última vez que estive do jeito desejável para essa piscina em forma de gente que sou. O filtro ligado todos os dias já não adianta, não enxergo muito à minha frente, cada vez que abro os olhos dentro de mim.
O que faz a piscina ficar límpida de novo é uma espécie de decantação, processinho básico, só leva um tempo determinado. Derrama-se meio litro de clarificante, não serve outra coisa. E espera. Não pode entrar, não pode mexer. É preciso aguardar que o líquido clarificante junte cada particulazinha minúscula em algo maior, pesado o suficiente para ser depositado no fundo. De fora, vemos uma crosta meio verde que se forma, ao longo das horas. Quanto mais se pode ver a crosta, mais clara fica a água.
Penso se seria o processo terapêutico uma espécie de clarificante, que fizemos sem saber muito o que esperar, nem qual é o tempo certo. Pior, instado a reagir numa piscina que não verdadeiramente fica quieta, pois impossível nos abandonarmos tempo o suficiente para fazer as partículas se aglomerarem no fundo, o suficiente para serem retiradas dali. Não dá para ser como na piscina, que observo seca e segura, da borda.
No mundo ideal, esperaríamos quietos, juntar tudo aquilo que, agora, turva nosso peito, retirando a limpidez convidativa dá água. Enquanto estivéssemos só assistindo o processo, formaria-se um tapete feio de sujeira esverdeada, pronta para ser sugada para fora, com uma bomba. Quem dera assim fosse. Na manhã seguinte, antes mesmo que eu acordasse, alguém simplesmente passasse um aspirador, com a paciência suficiente para retirar bem lá do fundo, tudo aquilo que tinha ficado pesado demais para flutuar.
Enquanto não acontece, pois impossível, sigo mergulhada em águas não muito claras, mas tão conhecidas que consigo me situar, de olhos fechados. Esperando que qualquer um dos pequenos atos da rotina funcione como uma limpeza, rezando para que o filtro não pife e que a bomba siga fazendo circular o que nunca pode ficar parado.
#descrição: Separador de texto com a ilustração de uma fatia de limão em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Faz tempo que eu peço a Cintia, minha grande amiga, para escrever alguma coisa para news. Ela que é “my person” e construiu, durante esses 10, 12 anos de amizade uma linha direta para o meu coração. Uma dúzia de palavras e ela consegue me dizer das coisas mais duras às mais doces, de maneira irretocável. Ainda assim, teimava que ainda não era hora, que ainda não tinha o assunto nem o momento certo de escrever.
O pior é que eu até entendia, por mais que não acreditasse que fosse verdade, ela sempre sabe o que dizer. Entendia porque essa ideia de pensar muito sobre a hora certa para dizer o que posso e quero é bem conhecida minha e tem me roubado muitas oportunidades. Esperei e eis que o texto perfeito dela, que encaixaria bem nesse tópico, chegou para mim como email, falando comigo de uma forma tão genuína que eu achei que precisava dividir com vocês. Aí está:
"Mila (ô Mila!),
Tem mensagem pra você!
Resolvi te escrever esse email porque estou tentando reviver o tipo de experiência de dez, onze anos atrás, quando a gente precisava se colocar em frente ao computador para enviar mensagens. Lembra? A gente tinha que parar, ligar o computador, escrever um texto sem limite de caracteres e direcionar para a pessoa, fosse por este mesmo endereço de email - que usamos desde quando? 2005?- ou pelo MSN, que mesmo sendo mais objetivo, ainda permitia uma puxada de papo pela puxada de papo.
Não sou saudosista, não acho que uma tentativa de reviver a internet da primeira década dos anos 2000 vingaria, porque foram muitas e muito profundas as mudanças na dinâmica social de lá pra cá. Eu só queria, e isso eu posso, escrever pra você, fazendo só isso. Assim eu fantasio ter um maior controle sobre o ciclo de conexão permanente e compulsória que o uso de celular impõe, e também posso me dar o luxo de poder lhe escrever, apenas. Sem soar como quem faz um pronunciamento, quem briga, quem ensina, ou mesmo quem utiliza um print de alguém que já pronunciou/brigou/ensinou e goza do alívio de quem se sente representado.
Até apaguei do celular os aplicativos do twitter e instagram nesse mesmo espírito. Me misturar menos ao mar de pronunciamentos, aulas a jato, portifólios e indignações seletivamente compartilhadas e poder ser lenta nas minhas análises, construções e diálogos. Agora parece que pra usar a internet adequadamente a gente precisa saber muito de tudo né? Ou pelo menos ter uma opinião sobre tudo, e rápido. Então eu queria escrever, mas devagar, e só por escrever mesmo. Saber como é que estão as coisas, quais sonhos tem tido e o que pensa que eles querem dizer.
Eu sonhei que ia viajar, mas não estava exatamente feliz. Eu estava em uma reunião, meu cunhado vinha me buscar e ele dizia que minha mala já estava no carro. Eu entrava no carro mas estava muito nervosa, pensando se todas as minhas coisas estavam na mala. Quem fez essa mala? Eu não tinha deixado ela pronta! Como eu podia fazer essa viagem (e era uma viagem longa, pra outro país) sem saber se tudo estava lá dentro? Não me passou pela cabeça nem por um minuto no sonho em confiar no que ele disse, que a mala estava pronta e só faltava mesmo eu entrar no carro e seguir. Eu só pensava que ia passar a viagem preocupada, apavorada com a ideia de não estar levando tudo que precisava.
Esse sonho me fez pensar. Lembrei de seus conselhos e de quantas vezes eu tenho me angustiado diante de possibilidades na vida, com medo de minha bagagem não ser suficiente, de não carregar tudo o que é (ou que eu julgo) necessário. Pensei em quantas vezes eu deixo de arriscar uma atitude ou um caminho diferente por achar que não estou pronta ainda.
Pra ser bem sincera, eu acho que a bagagem da gente nunca está 100% pronta, sempre vai caber uma coisinha a mais, nem que a gente precise ir criando mais espaço pra levar. Mas o grande problema pra mim tem sido me autorizar a pegar estrada com a mala que já está pronta no carro. Tem sido entender que esperar o momento certo pra submeter aquele artigo não tão bom - mas viável, procurar uma casa melhor - que ainda não posso pagar, ou até escrever aquele texto pra sua newsletter - que eu enrolo há meses com a desculpa de "esse tema já exauriu, vou buscar outro"- pode ser torturante demais e roubar muitas possibilidades de algo realmente bom acontecer.
Se de um lado o saber tudo de tudo das redes sociais pode ser um grande contratempo, de outro, a nossa sensação de não saber nada de nada, mesmo havendo uma mala arrumada no carro só esperando pra seguir viagem, é tão triste quanto.
Como eu disse, há sim, uma enorme chance de precisarmos ir obtendo mais itens que se façam necessários pelo caminho (mais experiência, mais estudo, mais maturidade), mas isso não deveria impedir ninguém de seguir viagem com o que já tem guardado.
Eu tenho mais coisas a dizer, outros assuntos pra conversar, perguntas pra fazer, mas vou me permitir enviar esse email assim mesmo, sem a certeza de que está concluído (ou com a certeza da inconclusão), até pra ser coerente com a ideia da viagem possível com a bagagem existente das linhas anteriores. Escrevo mais depois.
Mande um email pra mim também, quando der. Eu provavelmente vou receber a notificação de sua mensagem imediatamente, já que com o trabalho, a desconexão não passa mesmo de fantasia, mas vou fazer questão de ler (e responder) sentada ao computador, lendo cada pedaço com a atenção inteira. Como fazíamos lá em 2010.
Um beijo."