Newsletter @milamesmo 8ª Edição
Demorei um pouco mais que o normal para lançar essa oitava edição, pois fevereiro foi um mês especialmente difícil. Mas cá estou, buscando dividir um pouco da saudade que tenho sentido. E falando sobre um filme que me deixou imensamente satisfeita. Para falar dele, contei com a participação muito especial de minha amiga Ieska Tubaldini, que vai lançar um livro logo mais.
#descrição: Separador de texto com a ilustração de um galgo em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Estava um silêncio desses que dá para escutar a chuva chegando, antes mesmo da primeira gota. Quente, como costuma ser em fevereiro. 3 cocos verdes abertos sobre a mesa e surpreendentemente nada se escutava pela casa. Nos últimos 10 anos, não haveria silêncio enquanto houvesse cocos verdes abertos em casa.
Fiona amava-os, do lado de fora, vinha o barulho que a vara de arrancar fazia no coqueiro, rendendo uns dois ou três latidos. Aumentavam no mesmo ritmo do balançar do rabo, à medida em que o facão partia o coco ao meio e fazia escorrer a água para dentro da jarra. O portão se abria e nem precisávamos nos preocupar com Fiona fugindo, como de costume, desde que o coco estivesse ali, nada lá fora poderia ser mais interessante naquele momento.
O próximo passo era a colher raspando, tirando aquela carninha branca, doce, com textura boa. Às vezes, um pedaço para mim, três para ela, que sempre comeu mais rápido. Até que sobrava só a casca, grossa e verde. E cabia a nós argumentar que “não adianta bufar, Fiona, acabou, aqui é só casca, olha”. Ela cheirava, inconformada, aquele tanto de casca que não rendia mais nada, mesmo tendo o cheiro que tanto gostava.
Fiona nos deixou há uma semana e, além do coco verde, muita coisa vai ficar sem lugar, por um tempo. As horas da comida terão que ser lembradas por nós, não pelo seu britânico relógio biológico. Ninguém resmungará contra os que brincam na piscina. Os vizinhos podem passar despercebidos pelo passeio, sem latidos. Os abraços ocuparão, no máximo, o segundo lugar do pódio de melhores abraços, o primeiro lugar será sempre dela. Igual para o melhor cheiro de cachorro, melhor nariz encostando na bochecha, mas sem lamber, porque era uma lady.
Da cozinha, sai minha mãe com uma faquinha que corta miudinho a carne do coco verde, como quem quebra um enorme vazio em pedaços. Ao fogo, com um copo da água do coco, uma xícara de açúcar e meia lata de leite condensado faz um doce, mexendo de vez em quando até chegar numa cor meio de ambrosia. Na culinária, chamam isso de reduzir. Talvez reduza, também, a dor da saudade da rainha Fiona, que em só 10 anos de vida, adoçou tantos dias e preencheu tantos silêncios.
#descrição: Separador de texto com uma ilustração de cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Gosto quando me indicam um filme com algo sobre deficiência e diz “vai tranquila, acho que desse você vai gostar”. Dessa vez foi Suelen, a amiga linda que fez toda a arte dessa news e do @boramesmo (segue lá no instagram @toro.estudio). Com essa indicação, ela eliminou o medo que vem junto com a empolgação, cada vez que vejo um filme com essa temática apontar no horizonte. Ao mesmo tempo que quero ver mais e mais obras tratando das mil facetas que a deficiência tem, morro de pavor do reforço de estereótipos, do desrespeito com nossas vidas, da superficialidade com que contam nossas histórias. Dessa vez, fiquei plenamente satisfeita com o que vi.
O filme se chama “Som do Silêncio” (Sound of metal) e está disponível no Amazon Prime. Indicado ao Globo de Ouro, retrata a vida de Ruben, baterista que percebe que está perdendo a audição, de forma progressiva. Mais do que a perda do sentido em si, o filme nos faz pensar nas consequências que grandes mudanças trazem para nossas vidas e a grande encruzilhada que se estabelece entre encarar o novo e lutar para ter de volta o que tinha. O personagem Ruben, interpretado lindamente por Riz Ahmed, descortinou uma sentimento que estamos todos, em maior ou menor grau, experimentando ultimamente: como contabilizar as perdas, enquanto depositamos no futuro uma esperança que seja. Diante de um cenário inesperado, que mexe com sua profissão e seu relacionamento com Lou (Olivia Cooke) de uma só vez, novas possibilidades se abrem, mas há um grande luto atrapalhando a tomada de novas decisões.
Ainda que a realidade da deficiência auditiva seja bem diferente da minha, com outras demandas e consequências, pude ver o quanto um evento como perder algum sentido ou função reitera a noção de que nada é só uma coisa, perene, ao longo da vida. Durante o filme, uma hora ouvimos cada acorde, cada folha mexendo na árvore. Em outra, passam minutos completamente sem som ou escutamos na forma distorcida que Ruben ouve. Enquanto em algum momento se sente responsável por cuidar de sua companheira, Lou (Olivia Cooke), também experimenta o lugar de quem precisa de cuidados. Ambientes que antes eram seu habitat natural, entre baterias e equalizadores, se tornam opressores e desconfortáveis. Sempre que há rupturas, despedidas no filme, não se pode culpar nenhuma das partes envolvidas, deixando claro que a vida não é escolher lados.
Como pessoa com deficiência, havia uma certa angústia em ver o personagem buscando se tornar exatamente como era antes da lesão. É um movimento comum de quem acaba de entrar nesse lugar, principalmente pela forma como a sociedade encara a perda de algum sentido ou função como algo a ser consertado, para que volte a estar dentro da norma.
Muitas vezes, é um lugar solitário, pois não se abraça a nova forma de ser, nem tampouco consegue se igualar aos sem deficiência. Não à toa, a comunidade surda que o acolheu é bem restrita quanto a essa busca pela cirurgia e, por mais que soe estranho esse posicionamento, é importante para que a imersão no mundo surdo não seja apenas um remendo. Eu não conhecia boa parte daquelas tecnologias assistivas utilizadas para que Ruben pudesse se adaptar e os minutos que ficamos sem legenda enquanto os personagens se comunicam por língua de sinais demonstraram o quanto estamos distantes,o embasaria a vontade de Ruben de tanto retornar ao que era antes, ainda que ele estivesse sendo acolhido nesse novo ambiente.
Já experimentei esse lugar, em certa medida, de buscar tratamento para minha deficiência. Longe de ser uma promessa de cura, como o implante coclear parecia ser para Ruben, havia expectativas de melhora do quadro com a medicação que tomei. O peso do tratamento, o quanto ele é desgastante, custoso física e psicologicamente, é bem pouco discutido, num geral. A noção de que devemos estar muito gratos por ter acesso a qualquer coisa que nos melhore prejudica uma conversa mais aberta do quanto pode ser pesada essa busca e, mais ainda, a dor da expectativa frustrada, quando não atingimos o patamar esperado.
Ao final, “Som do Silêncio” conseguiu, com sua história, despertar ruídos que estavam abafados em mim. Conversas que eu deveria estar tendo há tempos. Sobre encarar mudanças, contar os mortos e feridos dos últimos tempos, manobrar a carreta cheia de expectativas e frustrações que dirigimos por essa vida. É um exercício desconfortável, mas necessário para alcançarmos uma quietude, ultimamente tão almejada.
#descrição: Separador de texto com a ilustração de um elefantinho em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Eu convidei Ieska para falar um pouco do projeto do livro que ela está escrevendo, por financiamento coletivo no apoia.se/otaldolivro. Queria dividir com o mundo essa linda iniciativa, grande admiradora que sou. No entanto, ela me presenteou com esse texto bem pessoal, que complementa a resenha anterior e eu sou muito grata a ela. Como se já não bastasse o que ela faz por mim, no dia-a-dia. Embarquem junto comigo nesse apoio para que o livro de Ieska se torne realidade, por enquanto, vai aí uma amostra da beleza e da importância que tem ela escrevendo:
"Mila me convidou para escrever algumas linhas sobre meu projeto de financiamento coletivo e, na conversa, disse que incluiria na mesma edição da newsletter uma resenha sobre “Sound of metal”. Eu ainda não tinha assistido ao filme, aliás, só fui assisti-lo porque ela indicou - tenho o mesmo receio que ela em relação a filmes que tratam a deficiência -, mas, depois que assisti, percebi que esse foi mais um dos “acasos” que me ajudam a ver sentido nesse mundo.
O filme fala sobre a perda de audição de um homem que trabalha com música, como vocês já viram na resenha de Mila, e há uma mensagem muito importante sobre o luto dentro desse enredo. Uma mensagem com a qual eu pude me identificar em níveis bastante profundos. Desde 2008 venho passando pelo processo de perda progressiva da minha voz. Há seis meses, ela está zerada, consigo me comunicar só através de sussurros. Nesses três anos, minha voz foi embora e voltou algumas vezes, mas nunca sumiu completamente como agora, então, ainda que eu não tenha como assegurar que ela nunca mais vai voltar, eu sinto que ela não vai. Acho que em algum momento a gente simplesmente sabe. Mas estou contando isso porque, mesmo que eu não dependesse da minha voz para trabalhar como Ruben dependia da sua audição, percebo cada vez mais como minha vida virou de cabeça para baixo com essa afonia.
Eu trabalho com a escrita, sempre me comuniquei melhor escrevendo do que falando, nunca fiquei confortável com minha comunicação oral e sempre que podia substituir um discurso falado por um discurso escrito, eu fazia. Talvez essa “negação” da minha fala enquanto ela existia tenha sido a maior responsável pelo choque que eu tomei quando ela parou de existir - como assim eu precisava tanto dela e não me dava conta? Foi quando eu percebi a real diferença entre nascer com uma deficiência e adquirir uma ao longo da vida. Minha relação com a deficiência física que tenho desde que nasci e os 31 anos que me relaciono com ela são infinitamente mais leves e melhor resolvidos do que essa bagunça completa que acontece entre mim e minha falta de voz. É verdade, o tempo de convivência é menor, mas os impeditivos práticos de uma deficiência de locomoção como a minha, que faz com que eu dependa de pessoas para 95% das atividades, são muito maiores do que os impeditivos práticos de uma afonia.
A afonia trouxe para mim uma urgência em gritar. Muito alto, o mais alto que eu pudesse, bem mais do que eu conseguia até sem nenhum problema de voz. E eu não posso gritar. Então voltei a escrever. Em novembro do ano passado lancei meu financiamento coletivo para escrever um livro. Esse tem sido o meu meio de gritar e a maior surpresa está acontecendo no fato de que, muitas vezes, eu me pegue gritando coisas que eu nem sabia que andavam aqui dentro. A melhor parte é que, como Ruben, eu não entendo nem metade das coisas que estão acontecendo comigo, mas tenho um monte de gente junto tentando me ajudar a entender. Mila é uma delas. Aliás, uma das primeiras delas. Esse financiamento coletivo só está no ar há quatro meses porque de um “Mila, só dê uma olhada nisso aqui, não sei se vou levar para frente...” veio um “já me inscrevi e paguei, agora você vai ter que fazer”. E aqui estamos. Aprendendo juntas, construindo juntas, enfrentando monstros juntas e compartilhando nossas vivências com quem quer fazer parte com a gente de toda essa loucura chamada vida. E aí? Vamos?"