Newsletter @milamesmo 8ª Edição
Essa edição ficou bem heterogênea. Surfei na onda de falar sobre BBB, xinguei muito sobre a falta de máscaras na cara das pessoas que vejo pelas ruas e fui presenteada com um texto muito sensível de minha querida amiga Lourdes Modesto. 2020 me tirou muito, mas me aproximou de Lou e só por isso já estou no lucro. Eu sinto que é nas palavras que eu vou me encontrando e eu só posso agradecer por ter gente tão querida dividindo comigo, não só na escrita, mas me lendo também. Espero que gostem.
#descrição: Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Janeiro é mês daquela tão esperada alienação, para muitos de nós: o BBB. Nem que seja para falar mal, para dizer que prefere ler um livro. Especialmente esse ano que está todo mundo matando (mais) um boi por um pouco de fofoca, intrigas que tirem nossa cabeça desse grande confinamento torturante que tem significado ser brasileiro.
Pipocam suposições sobre qual famoso vai estar no reality, até meme já surgiu com a quantidade de gente que a-pos-ta no nome de fulano ou de beltrano. O que eu, particularmente, aposto é que não vai ter uma pessoa com deficiência. E isso não é só o caso do Big Brother Brasil. (EDIT: Quando Pequena Lo surgiu fazendo propaganda do BBB, meu coração quase parou pensando que oportunidade incrível de calar minha boca. Mas, mais uma vez acertei)
Muitos vão lembrar que das 20 edições até aqui, teve somente uma participante com deficiência: a paratleta Marinalva. De quem nem posso falar porque eu, mesmo muito animada com a ideia de ver uma mulher com deficiência num reality show pela primeira vez, não acompanhei porque foi numa edição insuportável. Mas, convenhamos, é muito pouco diante do universo de realities que vemos por aí.
Para quem não sabe, o meu reality preferido, disparado, é Rupaul’s Drag Race. Dentre suas muitas edições, somente uma das drag queens trouxe um pouco do universo da deficiência: Yvie Oddly, que foi diagnosticada com a síndrome de Ehlers-Danlos, patologia que interfere na produção de colágeno e causa hipermobilidade de articulações, problemas cardíacos, dentre outras complicações. Por se tratar de uma deficiência não visível, sua condição só veio a público quando sentiu ter levado seu corpo ao limite, buscando se sobressair na competição. Lembro que fiquei altamente tocada nesse episódio, quando vi ali um sentimento muito familiar, de ter seu corpo como mestre de seu tempo, de suas intenções. Independente do desejo enorme que Yvie tinha de vencer (e spoiler, venceu!), ela teve que parar e pensar em suas peculiaridades, teve que respeitar quem ela é. Por alguns minutos de tela, uma população invisibilizada teve ali sua representante, ainda que a questão não tenha sido tratada com profundidade. Talvez sequer tenha passado pela cabeça de Yvie que pessoas com deficiência se viram ali nela, naquele momento. A sua vitória foi também um pouco nossa, ainda que ela não saiba.
Se a participação de pessoas com deficiência fosse mais frequente, surgiriam oportunidades de colocar os holofotes em questões que não são comumente vistas. Praticar o exercício na corda bamba entre acordar as pessoas para nossas questões, sem reforçar preconceitos. Mais ainda, uma excelente forma de trazer frescor a um reality show que, por vezes, fica repetitivo, contando com as mesmas “realidades”. Para que isso aconteça, porém, as produtoras deveriam estar mais abertas a pensar de que forma os seus programas podem ser desenhados numa lógica mais inclusiva, sem partir da ideia de que não dá.
Para além de proporcionar acessibilidade física, perfeitamente tangível, há que se pensar em modelos de programas que permitam o indivíduo com deficiência de participar com fluidez, sem que os demais participantes nos empurrassem a papéis pré-determinados tão comumente designados a nós. Quem esperasse nos colocar em caixinhas como a de herói ou de coitado poderia ser surpreendido com narrativas bem mais complexas. E talvez seja esse o grande temor daqueles que não ousam nos colocar na televisão, contando nossas histórias. Mas bem talvez mesmo, me pergunto se sequer pensem em nós como sujeitos capazes de ter histórias para contar fora do compartimento em que nos colocaram.
Ficaria muito claro como os realities falham em representar a realidade como ela é, de fato, com toda sua pluralidade. Empurraria a sociedade a pensar maneiras de incluir aquele indivíduo sem reforçar paternalismos, para que as disputas permanecessem justas, mas sem nos tirar a possibilidade de competir. Traria questões incômodas que são frequentemente invisibilizadas e que, numa casa vigiada como a do BBB, por exemplo, seria difícil esconder. Em algum momento, discussões necessárias surgiriam e eu não sei se as pessoas querem se dar esse trabalho, provável que prefiram seguir fingindo que pessoas com deficiência não existem na tv.
Eu sigo sendo uma apreciadora de alguns desses programas, mas lamentando profundamente que não se arrisquem em propor novos caminhos. A exclusão das pessoas com deficiência é feito de forma tão natural, que sequer ouço justificativas para isso, como se pcd não tivesse ex para tirar férias, não enganasse em redes sociais como no the circle,não cozinhasse como chefs de vez em quando ou fizesse barraco e desse pt em festa. Arrisco dizer que, para além de toda a preguiça capacitista que se recusa a pensar formas de incluir, há o medo de ter a cena roubada por quem consideraram, por tanto tempo, menos capaz de estar ali.
#descrição: Separador de texto com uma ilustração de ondas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Eu tentei ao máximo desviar do assunto pandemia nessa newsletter, mas os últimos dias tem sido intensos e é inevitável que transborde em algum momento. Observamos, perplexos, absurdos acontecendo em todas as esferas e eu entendo todo o efeito dominó que vem com o “mas se fulano faz x eu vou fazer y mesmo”. Sem querer tirar a responsabilidade dos gestores públicos que não estão sendo eficientes (governo federal, estou olhando para você), não consigo deixar de me revoltar com a população que não consegue cumprir uma determinação tão simples quanto usar máscara ao sair.
Para mim, é bem pouco, um pedaço de pano, de fácil acesso para a maioria, que as pessoas simplesmente se recusam a usar, mesmo cansadas de saber de sua importância. Lembro que, lá em março, quando eu traçava paralelos entre essa nova realidade e a vida das pessoas com deficiência, cheguei a mencionar que a máscara era uma nova tecnologia assistiva, que aprenderíamos a incorporar ao nosso cotidiano, da mesma forma que muletas, bengalas, cadeira de rodas são incorporados ao dia-dia de quem tem alguma deficiência.
Assim como não posso simplesmente “esquecer” minha cadeira de rodas em casa, ou dispensar o bipap numa noite de sono, ingenuamente pensei que as máscaras seriam encaradas como algo fundamental à convivência em sociedade. Dei de cara com o privilégio das pessoas sem deficiência que podem simplesmente escolher não cuidar de sua saúde e de quem está a sua volta. Quem vive na dependência de cuidados, como eu, preciso estar atenta para que, não só eu esteja protegida, mas todos aqueles que me cuidam. A noção de que não sou um indivíduo sozinho, me atravessa desde cedo. Se o outro não estiver bem, eu não vou estar. Não posso escolher ser uma ilha.
Da mesma forma, quando me parabenizam por ser disciplinada em exercícios, terapias, acompanhamentos médicos, penso que também não está muito na minha escolha dispensar eles, sem graves consequências. Ter um corpo com deficiência é viver numa constante vigilância, aprender desde cedo a ouvir os sinais e tentar mitigar os danos. Não é como se eu pudesse descansar por muito tempo de cuidá-lo, ao menos, notá-lo. Ver a todo momento gente se recusando a usar algo tão simples quanto um pedaço de pano cobrindo o nariz e a boca, ainda me deixa tremendo de raiva por dentro.
Ainda mais se pensarmos o quanto o ser humano é dado a utilizar novas tecnologias, quando quer. Todo dia é um gadget novo, uma intervenção estética diferente, cílios postiços, acessórios. Dá para ver a fascinação também naqueles vídeos de projetos super tecnológicos para pessoas com deficiência, que prometem coisas como uma cadeira que sobe escada, onde deveria existir uma rampa. Empurrado para o indivíduo a necessidade de adquirir um produto que poderia ser solucionado pelo espaço. Pelo visto, quem precisa se utilizar dessas coisas somos nós, o “ser humano médio” não pode ser pressionado a utilizar algo tão simples quanto uma máscara.
A pandemia, sempre ela, acirrou esse incômodo que tenho: pessoas plenamente saudáveis escolherem dispor de seu corpo da pior forma possível, sem ter que se preocupar com o seu bem-estar, sem literalmente temer pela vida. Chame de inveja, do que quiser. Mas reconheça o privilégio que é poder acreditar ferrenhamente que sua atitude individual não interfere na vida do outro. Escolher dispensar algo que protegeria gente que ainda corre muitos riscos, porque precisam tocar nas coisas para se localizar, empurram rodas da cadeira, não tem acesso a lavar as mãos em qualquer espaço ou precisam estar sempre perto de alguém para receber cuidados.
Sei muito bem de cada incômodo que a máscara causa, não é como se eu achasse que tudo são flores. Mas assim como um profissional de saúde nunca pode se abster de usa-la, mesmo no auge do desconforto, não consigo entender como alguém se acha no direito de dispensá-la tão facilmente. Não é como se a gente tivesse melhorado os números, como se estivéssemos vendo as coisas indo para seu devido lugar.
Quando, lá atrás, tive esperança que essa pandemia nos ensinasse alguma coisa, não antecipei que ela reforçaria o que eu já sabia. Que estamos com uma sensação tão grande de desamparo que a alternativa que muitos encontraram foi a de afundar uns aos outros, achando que é daí que virá a salvação. Há coisas muito mais sufocantes que uma máscara sobre o nariz e boca e a principal dela é essa falta de esperança, essa impossibilidade de confiar em cada um fazendo sua parte.
#descrição: Separador de texto com a ilustração de um diamante em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Fiquei honrada quando Lou me ofereceu um texto tão íntimo para minha newsletter, falando sobre sua relação com sua irmã. Faz um tempo que a gente se conhece, mas foi mais nesse ano passado doido que a gente fortaleceu esse laço e poder dividir a lindeza de escritora que ela é com os leitores da minha humilde news é uma dádiva. Ela foi uma das grandes responsáveis por essa minha news sair do campo das ideias. Agradeçam a ela, que me incentivou e me inspirou, com sua newsletter que vocês podem assinar aqui.
"Sobre ser irmã de uma mulher trans
Devo muito à minha teimosia. Em 2013, mesmo depois de ter perdido no processo seletivo para aluna regular no mestrado da PPGI da UFSC, me mudei para lá mesmo assim e me matriculei, como aluna especial, na disciplina Crítica Cultural Queer, ministrada pela professora Eliana Ávila, a quem também devo muito. Durante aquele semestre dolorido, esquisito, cheio de questões pessoais e dores que eu não conhecia, aprendi, com uma das professoras mais inteligentes e mais gentis, a respeito do que era Queer, de como estávamos nos organizando enquanto sociedade para reconhecer a produção cultural das pessoas queer, e como tudo isso era novo, vibrante e importante demais. Éramos 3 alunos na turma: um homem gay, uma mulher negra e eu, uma mulher nordestina, e foi lá em que eu adiantei toda a minha carga teórica a respeito de todas essas coisas. Foi quando eu li Butler pela primeira vez, e não entendi quase nada. Foi quando eu li Adrienne rich falando da heterosexualidade compulsória para a mulheres, que vivem num mundo em que a figura das lésbicas é repetidamente apagada. Foi quando eu li Anzaldúa e prometi para mim mesma que iria traduzir isso urgentemente, mesmo que só tenha publicado uma parte da tradução até hoje.
Mas foi quando minha mente se expandiu. Pelo material, pela discussão e pela generosidade da professora, a quem eu sou grata infinitamente.
Parto daí porque eu e minha irmã sempre tivemos uma relação de troca e confiança e, quando voltei para casa no segundo semestre de 2014, cansada de estar longe de casa e doente demais, que nossa relação se estreitou um pouco mais por causa de toda essa bagagem teórica que eu tinha trazido de volta de Florianópolis.
Mas talvez seja necessário voltar um pouco mais.
Eu e minha irmã sempre fomos pessoas diferentes. Nossos pais se equilibravam entre a preocupação das filhas sofrerem e o respeito à nossa natureza excêntrica, arredia e introspectiva e, na ponta do lápis, fomos crianças e adolescentes respeitadas na medida em que a paternidade e a maternidade humana podem respeitar. E assim crescemos.
Lá em 2014, agora na Bahia, na minha cidade Natal, compartilhava tudo o que eu tinha aprendido na Universidade, extasiada com o tanto de coisa nova e fora da curva da lógica cishet. Até que um dia tivemos aquela conversa: Na cozinha, na casa da minha mãe as grandes coisas sempre acontecem na cozinha, Raquel respondeu à pergunta “você é gay?” da minha mãe com a frase “mais provável que eu seja uma mulher que gosta de mulheres” e saiu, faceira, da cozinha e foi fazer suas coisas. Eu estava na mesa, minha mãe cortando coisas na pia. Minha mãe me olhou como quem diz “nossa, o que rolou?” e eu olhei, em resposta, dizendo “vamos acompanhar”.
Aos poucos, Raquel foi explicando sua trajetória na sua descoberta como mulher trans. No caso dela, o processo levou anos, até que ela entendesse que todas aquelas questões que a incomodavam e aprisionavam se davam por ela não se relacionar com o corpo que ela tinha. E foi um processo comprido. Para nos organizarmos a respeito de tudo isso, principalmente minha mãe. Para Raquel, uma questão de anos tinha se resolvido; para minha mãe, entrava uma nova etapa da maternidade: inesperada e desafiadora. Eu só achava interessante, curioso.
Do dia na cozinha até Raquel definitivamente começar a se vestir como mulher e sair na rua foram dois anos. Eu e minha mãe fizemos como sempre fazemos: nos educamos e nos preparamos para lidar com a família, que foi o grande desafio disso tudo. Como Raquel sempre teve a fama de introspectiva e arredia, as pessoas se dirigiam principalmente a mim para tirar dúvidas e, infelizmente, serem grosseiras e preconceituosas. Tive que trabalhar muito na contenção e na educação das pessoas da minha família paterna, porque eles entraram num processo triste de negação e eu tive que estar lá para que minha irmã não sofresse mais.
Minha mãe também se poupou e ficou na contenção das questões de Raquel e assim vivemos por um bom tempo.
É interessante como há padrão até para o que é queer, ou seja, algo que seria a tangente da sociedade e dos padrões. Por exemplo, minha irmã não assumiu a estética da mulher perfeita que terá passabilidade como mulher. Ao contrário, por questões outras, às vezes ela fica com a barba nascendo, o cabelo afuazado, roupas descombinadas, e esse é outro processo das pessoas encararem-na como mulher trans, pois o “descuido” com sua estética, ou seja, o fato de ela não buscar a perfeição do instagram, ou sequer agradar o olho de quem a vê, é usado para provar que ela, na verdade, não é mulher, sendo que algumas pessoas já até cogitaram que ela está em surto.
Penso em muitas coisas a respeito da minha irmã no mundo. Primeiro, que sorte que já passamos da época dos sanatórios, em que ela teria que ir para um deles e, talvez, ficar presa lá até morrer. Depois, que agonia, que ainda há milhares de violências que ela passa todos os dias, quando pessoas olham com nojo para uma pessoa usando uma saia, sem incomodar ninguém de fato. Por fim, é o momento que eu busco a fé que ainda me resta para pedir aos céus, que ninguém mate a minha irmã só porque ela existe."