Newsletter 6ª edição
Definitivamente, o que há de melhor em mim é a minha habilidade em escolher pessoas maravilhosas para estar por perto. Nessa edição, minha amiga Patrícia Guedes, arquiteta e mulher com deficiência, nos traz um texto muito forte sobre propostas para pensarmos o mundo daqui para frente, sob essa nova realidade. Patrícia é uma dessas pessoas que transformam a vida daqueles que a encontram com uma habilidade enorme com as palavras. Seja por áudio, ao vivo ou em texto, um papo rápido com ela é bem capaz de te deixar meio atordoado, pela genialidade das ideias mas ao mesmo tempo acolhido. Ela jura por deus que eu não faço ideia do que tô falando quando elogio ela, então vocês tirem suas próprias conclusões.
Trago também um filme da netflix com uma protagonista com deficiência. Sim, por incrível que pareça, eles existem.
Descrição da imagem: Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
“Soy una raya en el mar
Fantasma en la ciudad
Mi vida va prohibida
Dice la autoridad”
Manu Chao – Clandestino
Desde o início da pandemia, passei a ter questionamentos extras sobre a nossa vida e o nosso futuro. Diariamente fico pensando no que será do mundo e se ele vai mesmo acabar. Ou, ao menos, a humanidade, já que o resto do planeta sem a raça humana parece estar indo muito bem, obrigado.
Penso em formas de viabilizar a existência por aqui. Utopias, jeitos diferentes de viver. Esse grande botão de reset que a realidade impõe agora me faz pensar em todas as instâncias da vida. Como a gente vai se relacionar agora? Vamos seguir consumindo as mesmas coisas, da mesma forma, nas mesmas quantidades? Como serão os projetos de arquitetura e urbanismo daqui para a frente?
Até aqui, nenhuma dessas perguntas teve uma resposta convincente para mim. Mas a última, em particular, é a que mais tem me feito pensar. Primeiro, por se tratar da profissão que escolhi, preciso saber como será exercê-la a partir de agora. Segundo porque, desde sempre, por ter uma deficiência, a relação entre o meu corpo e o espaço construído sempre ocorreu de forma política, já que o corpo com deficiência não é visto por aí com a frequência que deveria.
De março para cá, minha cabeça deu muitas voltas nesse assunto. O que será que vai mudar? Que novas estruturas vão aparecer? Principalmente, quais elementos de tornarão obsoletos e tenderão a desaparecer na nova configuração dos espaços? Com o tempo, vi que essa não era uma questão apenas minha, mas de vários outros arquitetos. Muita gente revirando os miolos na tentativa de encontrar a nova solução para os espaços capaz de restaurar uma rotina minimamente funcional durante uma pandemia com altíssimo índice de contágio (se você usa a expressão "novo normal", por favor, não me dirija a palavra). Com a profusão de ideias, muitas propostas surgiram: construção de cabines nos comércios para uso individual ou de pequenos grupos, quartos de hotel sendo transformados em escritórios individuais, banquinho e chuveiro na entrada de cada residência para ninguém transportar o vírus para dentro. Soluções interessantes, mas que ainda me incomodavam porque ainda eram muito pouco para uma situação que deve se arrastar ainda por vários meses. Um paliativo, um band-aid em cima de um tiro de 12. Ok. Mas, se não é isso, Patrícia, vai ser o que então?
Algumas semanas atrás, uma arquiteta e cicloativista foi atropelada e morta numa rua em SP. Eu não a conheci, mas pelo que acompanhei, vi muita gente citando o quanto ela era combativa e atuante na luta pelo direito à cidade. Poucos meses antes, um ciclista também pedalava com alguns amigos aqui na minha cidade, Brasília, e teve o mesmo destino. Você já deve ter ouvido histórias muito parecidas com essas e deve estar aí, se lembrando de quanta gente já morreu. Guarde essa informação, já já a gente vai usar.
Desde o começo do isolamento, tenho acompanhado também a reação das pessoas a ele. Vi muita gente nervosa, se perguntando como seria ficar fechado em casa por um longo período, sem poder encontrar ninguém, nem ir aos locais públicos favoritos. Muita gente evocou as questões de saúde mental para driblar a quarentena, "como vou viver sem dar um abraço em quem eu gosto?" era uma semântica recorrente em várias conversas. No entanto, meu círculo de amigas com deficiência não demonstrava esse excesso de preocupação. A ausência de convivência e de estar nos espaços não era muito maior do que o que o dia a dia sem pandemia as impunha.
E daí, minha filha? Que que tem a ver uma coisa com a outra? Se acalme. Já digo.
Analisando essas questões, vi que o meu incômodo, aquele lá de cima, não era diferente sob nenhum desses prismas que eu falei aqui. Nem sob a ótica dos ciclistas, nem sob a ótica das pessoas com deficiência, nem sob a ótica de todos que estão vulneráveis à pandemia. Ele, na verdade, pode ser resumido em um único: por que seguimos insistindo em modelos urbanos tão hostis para as pessoas? Por que os espaços contemporâneos são tão estéreis e não permitem que sejam habitáveis de forma justa?
"Essa é fácil", você vai me dizer, eu sei, "foi o Modernismo que fez isso. Brasília é assim, essa aberração de concreto, mas minha cidade não é assim não. Minha cidade é normal. Ela acolhe todo mundo, é cheia de praça e gente circulando livre".
Ah é? Tem certeza? Então, me responda:
Por que tem tanto ciclista ainda sendo atropelado e morto? Quem disse que o carro tem primazia sobre a via?
Por que a gente não consegue circular na cidade mantendo um pouco de distanciamento social? Sua cidade tem calçada larga o suficiente para isso? Ela está inteira? Ou tem buraco e desnível o tempo todo?
Perceba que as questões que coloquei aqui não tratam de acessibilidade pra pessoas com deficiência apenas, mas de uma estrutura que torna, hoje, as cidades inacessíveis a todos. No entanto, seguimos apostando nessa fórmula falida de nos guiarmos pelo mercado imobiliário, que diz quanto é calçada demais, quanto é calçada de menos. Quanto deve haver de ciclovia, quanto de rodovia, tudo com base não no valor, mas sim no preço dessas coisas, criando espaços inacessíveis, cada vez mais inabitáveis e fomentando as xenofobias urbanas. O que não habita a cidade da forma padrão é um estranho completo, que não pode estar no mesmo espaço que eu. Ciclistas, cadeirantes, crianças, pessoas gordas, cegas, surdas, em situação de rua. Por favor, se retirem. Ou melhor, nem venham. Aqui não é o lugar de vocês.
A questão é que agora, a cidade que antes não servia apenas para pessoas desagradáveis, agora não serve a ninguém. Não há calçadas e espaços de convivência seguros para ninguém, pois não há muito como fazer distanciamento na configuração que está posta, baseada no quanto nos diz o mercado ser adequado a uma habitação. A hostilidade urbana, plantada e cultivada há muitos e muitos anos para afastar pessoas indesejáveis, agora é o veículo do vírus. O que os grupos marginais experimentam toda uma vida chegou e engoliu os corpos padrão também. E agora? Precisamos MESMO construir novas estruturas para lidar com isso? Que horas vamos falar em demolir o que não serve mais a essa realidade? Calçadas, prédios, preconceitos com corpos diferentes, tudo que, já sabemos, não nos atende como sociedade, mas lutamos, sem justificativa, para que se mantenham.
Essa conversa poderia ser estender muito (talvez vá), mas por hoje acho que vou pedir pro garçom trazer a parcial, que eu preciso ir. Mas eu acho que volto aqui qualquer dia desses, pra gente se indignar mais sobre algumas coisas. Foi um prazer, viu? Brigada eu.
Descrição da imagem: Separador de texto com uma ilustração de ondas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Há umas semanas assisti Margarita com Canudinho, um filme de 2014, da diretora indiana Shonali Bose, disponível na Netflix (clica aqui e já põe em sua lista). O filme conta a história de uma mulher com deficiência, Laila, que estuda música numa universidade em Delhi e fala desses primeiros anos de muita descoberta, mudanças para outro continente, busca pelo amor e por si mesma.
Muito significa ver essa tão rara representatividade na mídia, reflexões que faço sozinha se acirram quando encontro personagens que carregam em suas narrativas elementos que vivo diariamente. Já de primeira, me chamou atenção no filme a cadeira de Laila ser igualzinha a minha. Senti coisas bem incomuns, talvez por ver tão pouca mulher com deficiência em filmes, e, ao mesmo tempo que achei ali uma conexão, me senti um pouco nua. Como se eu tivesse de shortinho e pernas de fora, desfilando na tv, me vendo por ângulos que eu não me vejo normalmente. A sensação de ter algo tão seu ali na tela, quando a regra é não haver semelhanças comigo, me trouxe muitas reflexões.
Para muitos, pode parecer apenas uma peça de roupa ou um objeto de decoração, desses que as marcas cedem aos produtores para aparecer nos filmes, mas era minha cadeira de rodas. Mesma marca e modelo que está comigo desde 2005, eu só troco a cada meia dúzia de anos. A cadeira que faz parte de quem sou e que, por mais que alguns digam que nem notam ou que não é importante, vem acoplada em mim, está presente em cada encontro presencial que tive nos últimos 15 anos.
Logo nos primeiros minutos do filme, no entanto, Laila se muda para Nova York para uma nova vida, e com isso muda de cadeira. Foi um soco no estômago, perder minha cadeira de vista. Mas ali Laila começava uma nova jornada, que inclui, dentre tantas novidades, o amor de uma mulher, também com deficiência e ativista.
Enquanto se desenrola a vida da jovem, vi na obra momentos não só exclusivos de quem tem deficiência, mas também aqueles que, ainda que comuns a todos, carregam um tom bem específico quando acontece conosco, como por exemplo, a necessidade de ser bem recebida em grupos e o medo de perder os pais.
A cadeira não era mais a mesma, mas o que ela vivia ainda parecia muito familiar. Não dá para ignorar o quanto as experiências que a deficiência trouxe a Laila definiram seus acertos e erros, nesse começo da vida adulta. Como fez pesar algo o que talvez fluísse como água. Talvez se ela tivesse mais obras como essa para ajudar a enxergar por outra perspectiva algo que ela teve que lidar sozinha. Essas coisas nos ajudam a digerir o litrão de sentimentos que a vida impõe. Precisa ser mais servido à nossa mesa, para ser tragado para dentro e absorvido, feito uma bebida num canudinho.
Descrição da imagem: Mulher de pele clara e cabelos castanhos longos, veste blusa laranja e está sentada. Ela sorri com a língua entre os dentes, jogando a cabeça para trás e segura um copo amarelo com canudo azul. Ao fundo, janela e plantas.