Newsletter milamesmo 5ª Edição
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Milton Nascimento
Essa edição foi feito espremida entre uma raiva e outra que a gente anda passando no dia a dia. Fala de cada um ter seu tempo. Fala da menina com deficiência física que sou e traz mais um convidado, dessa vez, para falar de educação especial. Quem quiser saber mais sobre o tema e porque eu tô batendo tanto na tecla #educaçãoespecialnãoéinclusiva, fica bem à vontade de perguntar. Obrigada por estarem aqui, mais uma vez.
Descrição: Separador de texto com a ilustração de uma rodela de limão em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
"As mangas hoje em dia tem gosto de nada." disse, enquanto descascava uma manga-espada, depois de sua voltinha pelo quarteirão, num domingo de céu azul aguado. Olhei para fora e, dentre as árvores todas que se vê daqui, lá estavam as mangueiras floridas.
Tudo parece bem com a mangueira florida, mais longe dá para ver também aquelas mangueiras com folhas arroxeadas, das que parecem ter acabado de nascer. Nenhuma delas parecem estar ainda preparadas para dar mangas, ainda que tenha chovido bem, no tempo certo e agora, também no tempo certo, esteja sol.
Mas então por que a manga está com gosto de nada? Como será que está o pé de onde ela saiu, parece que não muito tempo atrás. Florindo é que não é, mangueira florindo ainda não dá manga. Se deu, está adiantada, já dando frutos, que vão para as feiras e supermercados. Está sendo o orgulho de seu produtor, com suas mangas com gosto de nada, mas prontas a tempo.
Alguns diriam que a mangueira florida está muito da bonita, parece bem, mas cadê as mangas, se é que elas virão. Não se pode contar antes de sua hora. E se vierem, terão gosto de manga ou de nada? É bom que ela se adiante, pelo visto, antes que perca para todas as outras mangueiras já prontas.
Ninguém parece querer esperar chegar a época da manga. O tempo de florir parece ser um mero detalhe, quem vê pensa que é só para deleite dos olhos, quem sabe não possa ser encurtado? Para que venha logo a manga à mesa. Nem que, para isso, nos esqueçamos que florescer é a própria razão pela qual a manga existe.
descrição: Separador de texto com a ilustração de um elefantinho em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Dia 11 de outubro foi Dia da Menina e Dia da Pessoa com Deficiência Física. Nada mais natural que eu fizesse um mashup dos dois e escrevesse sobre a menina com deficiência física que um dia eu fui.
Esses dias ela me veio várias vezes, foi uma semana difícil, desde que saiu o decreto sobre a educação especial (Quem ainda não sabe do que eu estou falando, tem texto aí embaixo e mais no meu instagram). Assim que soube da notícia e, como adulta que já estudou um pouco sobre direito à educação, eu me senti completamente desesperada por todas as meninas, com todas as deficiência. E chorei, como só adultos fazem, aquele choro de quem entende a seriedade das coisas e não aguenta o peso de saber que o que fará para mudar as coisas pode não ser suficiente.
Foi a menina que um dia eu fui que me pegou pela mão, ela que sempre teve a mão pequenininha, que meu pai dizia que parecia um chaveiro. Ela me lembrou o quanto foi feliz numa escola inclusiva, lembrou do sol que batia no caminho de ida, na brisa que batia no caminho de volta. Pensei, ainda, nas meninas com deficiência que não poderão frequentar uma escola perto de casa, agora que poderão se encher de desculpas para negar sua presença.
A menina lembrou que, quando eu era ela, era rodeada de amigos, mas em algum momento, me sentia só. Ninguém tinha cadeira, fisioterapia, ninguém dormia de órtese, ninguém usava aparelho. E me mostrou que, agora não, agora eu tenho outras meninas com deficiência ao meu redor, que lutam juntas, sobre suas rodas, seus aparelhos, digitam frenéticas no caminho da fisio, palavras que são mais do que palavras, são ações organizadas para que nenhuma fique só.
E quando eu passei um dia inteiro com dor, dessas que só adulto tem, de stress e cansaço, a menina com deficiência me lembrou que lá atrás ela, tão pequena, sabia respeitar seus limites e que não era porque eu estava adulta, que eu podia mandar e desmandar neles. Que ela brincava, se divertia, voltava com os olhos vermelhos de tanta piscina, mas era completamente compreensível consigo mesma, quando tinha que parar tudo para uma fisioterapia ou quando uma simples gripe tornava um motivo de preocupação, ainda que tão bem disfarçado por minha mãe.
Acima de tudo, a menina com deficiência física me fez lembrar que o fato da gente ser diferente do mundo não deve nos tirar as oportunidades, por mais que queiram nos fazer acreditar que sim. Que poderemos escolher caminhos, que podem levar mais tempo, ou precisarão de mais coragem, mas que o que é nosso, nos leva longe. Que as brincadeiras que ela inventou ainda vivem nos meus modos de produzir. Que o corpo que ela cuidou ainda me sustenta. Por isso, ela sempre estará em qualquer coisa que eu faça. Feliz dia, menina com deficiência física. Que eu seja tão brilhante, honesta e generosa como você foi, para sempre.
descrição: Separador de texto com a ilustração do rosto de Mila em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Uma das pessoas com quem mais conversei desde que saiu o decreto 10.502/20 sobre educação especial foi meu amigo, Leandro Alcolumbre. Graduando em Direito, Leandro é cego e acaba de entregar sua monografia sobre direito à educação da pessoa com deficiência.
Nós dois estávamos perplexos com as mudanças, conversando sobre como o novo decreto feria aspectos essenciais da legislação que protege o direito à educação. Como era confuso, dúbio e tinha uma aura de boa intenção que dificultava ainda mais que a população entendesse os reais interesses de mudança tão absurda. Disso saiu um texto que fizemos em conjunto, onde Leandro conta um pouco de como foi sua experiência e daí podemos ver como ainda tínhamos tanto o que avançar, antes de sofrermos tão grave retrocesso.
“Não é de hoje que a coletividade alimenta essa ideia de que aqueles que fogem do padrão devem ser rejeitados. Se buscamos na linha do tempo, na Grécia, a mitologia reza que o deus Hefesto fora arremessado do monte Olimpo por ter uma deficiência e ser feio demais para viver entre os olimpianos. Já na mitologia nórdica, Hoder, o deus cego que, em uma das histórias, fora enganado por Loki para matar seu outro irmão, Balder. Tais mitos representam a pessoa com deficiência como incapaz, manipulável, indigna de estar entre os demais por ser o que é.
Ao longo dos séculos, essas ideias justificaram práticas como a de criar espaços voltados para a população com deficiência, alegando que precisariam ser cuidadas de forma bem específica. Vê-las como sujeitos que, ainda que precisem de cuidados, são donos de sua vida, ainda causa estranheza a muitos.
No Brasil, esses primeiros modelos de instituições para acolher PcDs foram criados na década de 1850. Só após muito anos de luta, a Constituição Federal de 1988, trouxe em seu art. 208, III, que educandos com deficiência sejam matriculados, preferencialmente, em instituições de ensino regular, porque entendeu-se, então, que a convivência com diferenças seria benéfica para pessoas com e sem deficiência. Da mesma forma, ficou estabelecida nas Convenções Internacionais, que o Brasil assina, sobre os temas educação e direitos das pessoas com deficiência. E não por acaso, foram normas baseadas em anos de estudos e para combater uma experiência desastrosa com uma educação que só segregava. A Lei Brasileira de Inclusão, de 2015, regulamentou tudo. E o novo decreto, que sequer a cita, fere frontalmente o quanto exposto lá.
Nasci em 97 e vivenciei muito dos problemas de se ter educação em rede especializada. Quando buscava matrícula, ainda era possível rejeitar se houvesse um `justo motivo'. O novo decreto reacende essa opção, dizendo que é um direito de escolha das famílias, quando, na prática, facilita a negativa das escolas em receber alunos com deficiência. Lembro que minhas andanças para conseguir uma escola foram várias, com bate-bocas acalorados entre meus pais e os diretores das escolas, que alegavam não estar preparados para receber um aluno cego.
Inicialmente, tive sorte em estudar numa escola na qual uma professora tratou de aprender braile, exigia do meu aprendizado e não me tratava como um coitado, diferentemente de outros professores. Era uma instituição privada, pequena, dessas em que todo mundo se conhece. Desde aquela idade, eu já me dava super bem com meus colegas de classe, brincávamos, corríamos -- e às vezes brigávamos -- como qualquer criança. Não lembro de qualquer preconceito por parte das outras crianças.
Quando passei para uma escola pública, já mais velho, se iniciou uma odisseia. Houve recusa da matrícula e, só após muita insistência dos meus pais e ameaças de levar o caso ao Ministério Público, por discriminação, fui aceito. Apesar disso, não estavam satisfeitos. Fizeram a ressalva que eu seria acompanhado por um professor - também cego - para que fosse avaliado se eu realmente tinha aptidão para estar ali. Caso negasse, não me aceitariam. Lembro que o professor-avaliador ficou bastante indignado em me ver submetido àquele escrutínio, defendendo que deveria, sim, ser matriculado. Novamente, o preconceito não surgiu dos demais alunos, mas professores defendiam ferrenhamente que meu lugar não era ali, que poderia atrasar o aprendizado dos demais alunos, que dificultaria as coisas. Experiências assim não são isoladas, muitos de nós já passaram por situações semelhantes e, no meu caso, as lembranças de que, mesmo sendo todos crianças como eu, os demais alunos percebiam o preconceito e ficaram ao meu lado.
Mais tarde, no ensino médio, muitas desculpas me foram dadas para que não tivéssemos professores que adaptassem os materiais escolares, raramente eu tinha acesso aos textos de forma acessível. Eu era apenas inserido, raramente incluído. Ao conversar com pessoas da minha idade, que tiveram mais contato com o diferente, percebo menos estranheza do estive acostumado a observar, quando precisava tratar com adultos. Estou concluindo minha graduação em Direito e noto que os demais alunos me tratam com relativa naturalidade, como de fato deveria ser. Às vezes, surge alguma surpresa de algum professor ao me ver ali -- normalmente desacostumados com alunos cegos-- substituindo por qualquer outra coisa na medida em que convivemos e estabelecemos vínculos.
Como se percebe, o que faltou para que eu fosse incluído de fato foram, justamente, as ferramentas que poderiam ser disponibilizadas nas instituições em que sofri maiores discriminações. Materiais adaptados, profissionais que enxergassem minhas capacidades. É preciso que se constate o óbvio aqui, a mera matrícula não é educação inclusiva, constituindo em mera inserção do aluno.
Quando o novo decreto 10.502/2020 fala em critérios para receber alunos com deficiência na rede regular, abre brechas a essas discriminações que tanto vivi quando no início da minha vida escolar. Transferido ao aluno a responsabilidade de estar pronto para um sistema educacional que não foi pensado para ele, quando deveria ter sido, porque a regra é educar sem discriminação. Segregar o aluno em instituições especializadas em razão de sua deficiência é retrocesso social. É atribuir à pessoa o fracasso de um Estado inoperante que muitas vezes não fiscaliza a aplicação dos recursos para que a escola regular seja inclusiva de fato. As instituições de atendimento especializado têm um papel muito importante de apoio das pessoas com deficiência (mesmo fora da idade escolar) e nunca deixaram de existir, mas não constituem o caminho para a educação inclusiva. Por exemplo, o cego pode aprender sobre uso da bengala, do braile, em contato com outros cegos, em instituições que devem funcionar puramente para assistência. Jamais substituir o ensino inclusivo em instituição regular.
É tempo, enfim, de recordar as palavras do Ministro Fachin que, em importante voto na ADI 5357, declarou: "É somente com o convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento que pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o bem de todos seja promovido sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação(...)".”