Newsletter @milamesmo 4ª Edição
Sempre esperei que essa newsletter não fosse um trabalho só meu, especialmente porque quase não há nessa vida algo que eu faça sozinha. De sair da cama a entender minha cabeça, eu preciso da ajuda do outro. Nem que eu quisesse, poderia dar conta sozinha. E é por isso que nessa edição eu trouxe uma grande amiga, Camila Race, para falar sobre uma conversa que tivemos sobre o CuriousCat, junto com o texto que eu escrevi sobre o tema.
Quero apresentar às pessoas o tanto de gente incrível que eu tenho o prazer de conhecer e achei que aqui seria um espaço bom para isso.
Além disso, escrevi sobre sobre o clipe de novo de Lady Gaga que, pode até não saber, mas no meu coração, é minha amiga, sim.
#descrição: Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo. Fim da descrição
Uma pergunta que sempre me fazem é “Por que você continua respondendo perguntas no CuriousCat?”.
Para quem não sabe, o CuriousCat é um site onde pessoas podem mandar perguntas anônimas, e podemos compartilhar nossas respostas nas redes sociais. É um experimento meio repetido na internet ao longo dos anos (lembram do ask.fm?) e com alguns elementos que podem fazer dele uma cilada, como o anonimato e a exposição. Compreensível, então, que as pessoas se perguntem qual a razão de eu me meter num rabo de foguete desse. (Se quiser fazer perguntas, toma o link: https://curiouscat.me/milamesmo)
Primeiro, eu já sabia que seria assim. Sabia que fazer um perfil e ativamente responder a questões de anônimos poderia me colocar nesse lugar desconfortável, afinal não é de hoje que as pessoas usam do anonimato para ofender estranhos (ou até conhecidos) na internet. A principal razão, no entanto, é nobre, eu juro: queria que meus seguidores tivessem algum lugar para fazer perguntas sobre deficiência sem ter vergonha de assumir que não sabem coisas simples. Especialmente porque acredito que a maior ferramenta para a destruição do preconceito é a informação. Não significa que temos a obrigação de pegar as pessoas pelas mãos e ensinar tudo que elas deveriam saber, nem que me vejo forçada a isso, mas que, uma hora ali em que estou sem fazer nada, não vejo problema em apresentar meu mundo defiça a quem esteja disposto a aprender.
Há ainda uma outra forma comum de interagir no CuriousCat, que se caracteriza pelas perguntas bem íntimas, de cunho sexual. Embora seja algo que acontece lá com todo mundo, acontece mais frequentemente com quem tem deficiência. Numa pegada de fetichização, anônimos acham que estamos em algum freak show onde se pode passar dos limites da gentileza em prol de um entretenimento com esse meu corpo “anormal”.
Recentemente os vloggers Hannah e Shane postaram em seu canal do YouTube (o Squirmy and Grubs) um vídeo em que respondem sobre intimidade e deficiência física. Eles pontuaram o quanto algumas das perguntas são feitas sem nenhuma preocupação com gentileza e cuidado - requisitos mínimos para quem deseja, de fato, aprender mais sobre qualquer tema - e como a eventual recusa em responder a algumas dessas questões é interpretada por muitos como um indicativo de que a vida sexual do casal não é suficiente.
É um pouco como me sinto. Muitas das questões que recebo têm o objetivo de duvidar das minhas experiências ou querem me colocar num lugar de exposição bem complicado para uma mulher, como se não pensassem as consequências que se expor pode nos trazer. É uma curiosidade que se reduz a diminuir, não pretende construir pontes com o universo das pessoas com deficiência, uma espécie de perde-perde porque só constrange e não responde, ninguém sai ganhando. Perguntar de uma forma aceitável poderia tirar da jogada alguns tabus que podem estar atravancando uma aproximação com alguém com deficiência.
Ultimamente, no entanto, as interações que questionam o que publico no Twitter, sob a justificativa de ser drama ou bobagem, têm me colocado para pensar. É uma tática comum de todos aqueles que pretendem desfazer das falas de grupos minoritários. O famoso “isso é mimimi”. Com essa desvalorização do discurso, no lugar de sermos ouvidos e termos nossas inquietações acolhidas, ficamos presos no primeiro passo: reivindicar nosso direito de falar. Nossas dores não são pouca coisa só porque não são a dor de geral. Antes mesmo de sermos ouvidos, de fato, precisamos gastar energia convencendo as pessoas que aquela é uma demanda real, uma visão válida de mundo.
A forma como colocam valor nas nossas reclamações é uma grande arma do capacitismo. Na medida em que os estereótipos mais associados às pessoas com deficiência são os do herói e do coitadinho, estamos constantemente numa gangorra: ora somos muito guerreiros por estarmos vivendo nossas vidas e fazendo coisas corriqueiras, ora somos coitados se reclamamos de algo que nos oprime. Uma vez que nos damos conta disso, vira um trabalho de Hércules não deixar transparecer nossas, como se herói fôssemos. Ao mesmo tempo, vigiamos ao falar do que nos aflige com medo de reforçar que somos infelizes. O tanto que isso mexe com o nosso psicológico, só cada pessoa com deficiência vai saber. O quanto duvidamos de nossas queixas e o quanto deixamos de ver coisas realmente boas que nos acontece. Muitas vezes os questionamentos que me fazem no CuriousCat vêm de pessoas que sequer vivenciaram aqueles incômodos e, em tese, sequer teriam como mensurar o que eu sinto, mas se sentem no direito de dizer que eu não deveria estar reclamando.
Por que, então, eu sigo respondendo a essas pessoas? Porque naquele espaço elas estão denunciando os pensamentos capacitistas que uma parte das pessoas tem e não tem coragem de dizer. À medida em que permito que se escondam no anonimato e, protegidas por ele, desconsiderem minhas falas, estou mostrando como minhas falas são desconsideradas tantas vezes no mundo offline. Quando eu reclamo sobre algo relativo a meu cuidado e recebo um anônimo dizendo “agradeça que estão te fazendo um favor”, fica claro como as pessoas ainda enxergam o cuidado com pessoas com deficiência como um favor, sobre o qual não podemos reclamar nunca. Ainda que nem todos tenham a mesma atitude do anônimo, é uma forma de começar uma discussão: será que você, no lugar de quem cuida de alguém com deficiência, ficaria à vontade com uma reclamação? Ou acharia “Poxa, eu aqui te fazendo um favor”?
Para finalizar, respondo perguntas no CuriousCat também porque acho divertido. Já dei muitas risadas e faço algumas perguntas a amigos e desconhecidos. Nem tudo que fazemos é para fazer sentido ou ser engrandecedor. Cabe a cada um de nós tornar os espaços (sala de casa, Twitter, grupo de Zap) mais livres para discussões no lugar de propagadores de um silenciamento que já acontece tão frequentemente.
#descrição: Separador de texto com a ilustração do rosto de Mila em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo. Fim da descrição.
Camila Race (que escreve na página @loba_boca do Instagram) foi a primeira amiga que fiz na faculdade de Direito, lá em 2005. Foi também quem quis saber mais sobre o que eu sentia em relação ao CuriousCat, antes mesmo de eu querer explicar. Ela me chamou no cantinho para falar sobre o que estava percebendo e colocar mais um tempero na discussão que já me atravessava.
Assim, a convidei a escrever um pouco sobre as coisas que conversamos. E saiu esse texto que, além de ler bem o tema, também é uma declaração de amor dela a mim. Disse a ela que fiquei tímida de postar, num primeiro momento (uma bobagem minha, que inclusive ela me ajudou a refletir sobre). Mas percebi nele uma escrita que eu sei que é verdadeira e evidencia como nossas vivências são entrelaçadas e encontram significado umas nas outras.
Camila é, portanto,a primeira de muitas pessoas especiais que eu mostrarei aqui:
"Receber esse convite de Mila Mesmo me deixou muito honrada, não apenas por ela ser uma grande amiga, mas por sua intelectualidade e atuação ativa quanto defensora dos direitos das pessoas com deficiência, senti uma baita responsa em compartilhar dessa newsletter.
Conheço Mila há muitos anos, diria que uns 15, cursamos juntas a faculdade de Direito. Mas na verdade nosso primeiro encontro não foi em sala de aula e sim numa sessão de cinema em que alguns calouros marcaram via internet de se encontrar, vimos um filme e depois fomos comer pizza. Como não poderia deixar de ser, Mila me impressionou de cara, eu que vinha de uma realidade na qual pouco convivi com pessoas com deficiência e, por ter minhas questões pessoais de sempre querer me esconder, ver a espontaneidade de Mila, sua simpatia e articulação me encantaram.
Ao longo da universidade nosso laço só cresceu e, muito rápido, descobrimos muitas coisas em comum, do cabelo alisado, aos incômodos com a superficialidade “bondosa” de alguns colegas. Nossa conexão foi imediata, juntamente com outras amigas, criamos um grupo de alma que nos salvou das drogas jurídicas, se assim posso dizer.
Como boa medrosa, nunca me senti confortável com as redes sociais, mas vendo o trabalho de Mila nas mídias, o quanto a sua voz ecoava temas importantes para toda a sociedade, comecei a criar um tiquinho de coragem, mas primeiro processei com ajuda terapêutica o meu pavor. Entendi que aquilo que sentia não era timidez, mas silenciamento e, mais uma vez, aprendi com a voz ativa de Mila.
Recentemente, lendo o CuriousCat da minha amiga, vi muitos comentários tóxicos e ela, sabiamente, expondo alguns. Apesar do incômodo e repulsa causada por essas mensagem, na hora consegui compreender a intenção dela e corri para lhe mandar um áudio.
Apesar de temos diferenças de vida, corpo e realidades, de saber que partimos de locais diferentes e de respeitar muito o lugar de Miloca, consigo ver conexões fortes nas nossas vivência e pontos de opressão que se entrecruzam.
Entre eles está a normalização da interferência em nossas falas e subjetividades, além da fetichização dos nossos corpos. Eu sou uma mulher negra que tardiamente me apropriei desse lugar, não por minha culpa, claro, mas por questões sociais e propositais da nossa sociedade.
Bom, indo direto ao ponto, após ver algumas mensagens tóxicas do CuriousCat, resolvi dar meu apoio e ao mesmo tempo parabenizar minha amiga pela coragem de expor o que precisa ser visto. Só achar absurdo as falas não vale, temos que nos olhar, somos seres cheios de contradições e vivemos numa sociedade capacitista, então ler algumas daquelas frases e permitir ouvir o nosso subconsciente para, assim, aprender a não ser, é muito mais importante que só se chocar.
Vivemos em uma sociedade racista, misógina, capacitista e discriminatória nos mais diferentes níveis, então, se chocar não bastar, o auto-exame se faz necessário.Por isso, mais uma vez registro a minha admiração e vontade de seguir aprendendo com a minha amada amiga. Que a sua voz ecoe onde ela quiser, sem pedir permissão ou ser autorizada. Afinal, a voz dela é a nossa e os espaços estão aí para serem tomados."
#descrição: Separador de texto com a ilustração de uma rodela de limão em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo. Fim da descrição
#descrição: Lady Gaga é uma mulher branca com cabelo azul e venda vermelha nos olhos, veste roupa em tons de branco, laranja e vermelho e está sentada na areia branca, em meio a uma bicicleta quebrada e romãs espalhado pelo chão. Fim da descrição.
Não é de hoje que Stefani Germanotta, Lady Gaga pros íntimos, entrega no clipe de seu single 911 tudo que a gente nem sabia que precisava: um clipe de pop que fala com algo que todo mundo passou ou vai passar, especialmente nesse momento que está tão difícil sequer processar as perdas.
Nem bem procurei as referências que estão já pipocando por aí, só ri com os memes. Para mim, nem precisei ir muito longe no entendimento, o clipe me ganhou de cara, é pura arte. Dessas que tem a habilidade de nos fazer sentir coisas antes mesmo de entendê-las.
A medida que fui percebendo o que ela quer dizer, foi encaixando as peças. O vídeo, fica claro, é uma representação de um acidente, no qual Gaga era uma ciclista que se machucou gravemente. Através dessa encenação, ela traz elementos próprios dos processos de trauma, dor, que nos fazem chegar ao momento da mudança que precisamos.
Já no início, os romãs (tão comumente chamados de frutos do amor) aparecem pelo chão e ela está vendada e sozinha. Processar dores pode ser algo com um começo bem solitário e meio turvo, não dá para saber exatamente o que vem pela frente. E daí se segue em movimentos não lineares até chegar no momento que mais me tocou no clipe, quando está sendo reanimada pelos paramédicos, simbolicamente. É ali que ela experimenta o maior sofrimento, o ponto de mudança, o qual vai impulsionar ela de volta à vida. É justamente quando sai o grito, quando fica insuportável o estado em que se encontra que se pode começar a se mexer.
Tomar consciência das nossas dores é inevitavelmente a parte mais dolorosa de qualquer vivência, ao mesmo tempo em que é fundamental para alcançar um lugar onde se possa ser cuidado, ter suas feridas tratadas. Ainda que o refrão repita que “não vou conseguir me ver chorar tudo de novo”, não tem jeito, é esse o caminho conhecido para tomar de volta as rédeas. Ainda que tenha aquela fase de se agarrar a status que não são reais, achando que temos controle sobre algo que claramente já não está em nossas mãos.
O refrão repete que somos nossos maiores inimigos e chega a hora de pedir ajuda. Chamar o 911, o SAMU deles. Muitas vezes, estamos feridos e desacordados demais para sequer entender o que está acontecendo. Mora justamente aí a importância de não só estarmos atentos a quem estiver precisando de ajuda, ao nosso redor, mas também ter a certeza que estamos cercados de quem possa nos ajudar.
Uma pena que nem sempre os processos que nos levam a tomar consciência dos nossos machucados vão resultar em videoclipes impecáveis, com looks incríveis, batidinha boa de pop e paramédicos bonitões. Muito pelo contrário, na maior parte das vezes, é um troço feio e embolado, que parece que vai acabar nunca, tornando difícil confiar no processo. Seja lá o que isso signifique. Ponto para Lady Gaga por ter tocado num assunto tão universal, mas do jeitinho particular dela, mais uma vez.