Newsletter @milamesmo 3ª Edição
“Mães, pais, filhos, outra família e amigos, todas as pessoas são a felicidade de alguém.”
Valter Hugo Mãe
Acabou que o tema dessa terceira edição toda remeteu a infância, mas nem foi proposital. Teve a ver com o presente de aniversário adiantado que minha mãe preparou para mim: um álbum só com fotos antigas, uma coisa linda. Espero que gostem.
P.S: Para quem tá chegando agora, dá para ler a primeira e segunda edição aqui e aqui.
descrição: Separador de texto com a ilustração de uma rodela de limão em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
descrição: foto de um muro de tijolos e piso de pedra, ao fundo aparece a lateral de um jeep azul. Fim da descrição
Ainda não consegui saber se é proteção essa coisa da vida não nos preparar pro que vamos sentir falta. Esses dias eu estava olhando umas fotos antigas, impressas, desse jeito que não fazemos mais e avistei, ao fundo de uma das fotos, o jeep azul do meu pai. Ninguém me preparou para sentir tanta falta de um carro que aparece lá no fundo de uma foto.
Não registrei o suficiente as brincadeiras no jeep, as idas até a escola, a diferença entre a cor dele limpa na garagem e a da volta para casa, cheio de barro. Não sabia que sentiria tanta falta, além de todas as coisas do meu pai, do jeep velho. Na época, fiquei chateada, guardei rancor do mecânico que deu ele como perdido, não podia ver um igual que circulava por Periperi que eu ficava indignada. Mas passou, meses depois, vieram outros apegos bobos.
Acontece que mais de 20 anos depois, calhou da foto aparecer no mesmo dia da Live de Caetano, em seu aniversário. Rodeado dos filhos, que acompanharam ele no interesse pela música. O jeep azul era um dos gostos que eu dividia com meu pai. Andar naquele jeep, nós dois, seria o equivalente a Caetano no violão enquanto Moreno toca prato. Dividir gostos é uma forma de sentir um afago.
descrição: Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
descrição: Foto minha criança usando uma camisa branca por baixo de um colete ortopédico que vai do pescoço a barriga, ele possui um ferro no centro e tiras de couro com presilhas ao longo do tronco. Estou sorrindo com olhos vermelhos e uso aparelho ortodôntico.
E por falar em criança, nesses dias que foram de muita nostalgia arrumando fotos, como eu falei lá no primeiro post, achei essa aí de colete ortopédico. Devia ter uns 11 anos. Lembro desse dia, já tava cansada de usar esse negócio para segurar uma escoliose que não parava de aumentar. Esse sorriso deve ter sido só porque a gente sabia que cada tinha que sair bem em cada foto, o tal do filme de 36 poses tinha que valer. Mas nada em usar esse colete me agradava.
Os meus colegas da escola, os conhecidos do bairro, ninguém na televisão lidava com isso de usar colete, só eu. O que eu sabia sobre aquilo tinha aprendido usando. Estava na 6ª série quando uma colega minha me mostrou que tinha em sua revista “Capricho” uma menina com um parecido, e eu fiquei encantada. Só um depoimento com uma foto, mais nada. Ainda assim, era a coisa mais próxima de mim que eu tinha visto naquela revista de adolescente, claro que me empolguei.
Até então, tinha sido eu e minhas ferramentas, que eu nem sabia quais eram, lidando com aquela coisa de cadeira, colete, aparelho e fisioterapias ao mesmo tempo que vivia a infância. A propósito, vivi bem, foi uma época linda, cheia de boas memórias e que fizeram um alicerce formidável para o que eu sou hoje. Eu fui criança e um bocado. E passou, como passa para todo mundo.
Acontece que, quando se tem uma deficiência, não importa o quanto tenha vivido intensamente e superado sua infância, apesar de todas as barreiras, de nos fazer desenvolver toda uma casca para se proteger do capacitismo, de amadurecer na marra para lidar com coisas sobre as quais ninguém ao redor passava junto, o olhar infantilizado sobre nós persiste na vida adulta.
Foram muitas vezes em que eu fui tratada como criança, nos mais diversos ambientes, só por estar na cadeira de rodas. Há uma piada interna com fundo de verdade aqui em casa sobre não poder passar perto do Papai Noel do shopping, que provavelmente ele irá chamar para saber o que é que eu quero ganhar de Natal. Recebo brindes infantis todo carnaval de rua. Aos 24 anos, uma comissária de bordo me deu um mascote da companhia aérea porque eu reclamei da demora em trazer minha cadeira pro avião. É o tipo de coisa que quem não experimenta sequer dimensiona o constrangimento. O que eu posso fazer, como mulher adulta, além de ser quem sou, para que me tratem como mulheres da minha idade são tratadas?
E esse receio de ser tratada como criança vai nos acompanhando de tal forma que moldamos nossa maneira de estar no mundo para sermos levadas a sério. Desde o jeito que falamos, as roupas que escolhemos, os lugares que frequentamos. Tudo é uma tentativa, muitas vezes frustrada, de não ser vista como criança. Ainda assim, há quem mude a voz e o vocabulário, para falar com nós, pergunte a quem nos acompanha o que queremos comer, peça para falar com nosso responsável, aperte nossas bochechas e por aí vai.
Pelo tanto que curti minha infância e pelo amadurecimento que alcancei, sinto que deveria não precisar me preocupar em demonstrar para outras pessoas o quanto sou adulta. Mas me percebo, muitas vezes, desviando de produtos com temas infantis ou mudando minha forma de agir para parecer menos jovial. Minha grande amiga Ieska, no twitter, resumiu bem esse pensamento quando se viu repensando a vontade de comprar uma camiseta dos ursinhos carinhosos, lançada numa dessas coleções nova que remetem aos anos 90: “como deve ser maravilhoso ser uma pessoa adulta não-infantilizada e poder usar essas peças livremente sem o risco de situações ainda mais constrangedoras do que as que a gente já passa vestindo roupas “adultas”.
No fim do ano passado, eu ponderei muito se comprava uma camiseta da Barbie na cadeira de rodas. Acabei usando e é uma das minhas roupas preferidas, dei até de presente. A verdade é que por mais que racionalmente eu saiba que não deva me curvar a essas ideias capacitistas, o receio de estar reforçando uma visão de que sou infantil me assombra.
O jeito que eu encontrei para combater isso, dessa vez, foi botar a maior pilha para que Ieska comprasse a camiseta que ela bem entendesse. E olhar bem para as minhas fotos de criança e lembrar o quanto eu vivi bem cada fase da minha vida. Mesmo sem todas as respostas, sem pessoas iguais a mim nos programas de TV, sem amigos com deficiência com quem eu convivesse no dia a dia, eu fui crescendo e amadurecendo. Quando se é uma criança com deficiência, muitas vezes o mundo não vai te tratar como uma criança. Nem todos os lugares te receberão, nem todas as brincadeiras te abarcarão, assuntos sérios como dor, cuidado, consentimento e disciplina entrarão na roda muito mais cedo do que o normal.
Crianças com deficiência fazem coisas coisas que muitos adultos tremeriam na base. Mais do que merecido que, ao atravessarem essa fase, seja dado a elas direito de serem tratadas como adultas que são. Particularmente, se olhar direitinho para mim, já estou precisando de um creme anti-idade e tudo. Quem ousar me infantilizar, vai passar vergonha sozinho.
#descrição: Separador de texto com uma ilustração de ondas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
É nítida a diferença que faz arejar os pontos de vista quando se quer contar uma história. Fui presenteada, também um pouco golpeada, nos últimos dias, por duas obras que foram contadas pela perspectiva de uma criança. Ambas fizeram comigo o que crianças normalmente fazem quando entram em um lugar: trouxeram graça e agitação.
A primeira foi o livro “O paraíso são os outros”, de Valter Hugo mãe. Nele, uma menina fala sobre como enxerga os casais. E nessa de divagar sobre o que, para ela, parece o amor, toca pontos importantes que, de tão simples, podem passar despercebidos àqueles que já viveram um bocado de anos. O livro deixa claro que a experiência de quem não viveu muito pode tornar visível partículas da realidade que vistas cansadas não enxergariam. Do seu jeito, a menina nos diz coisas diretas que parecem esquecidas com o tempo, como “a tristeza a gente respeita e, na primeira oportunidade, deita fora. É como algo descartável. Precisamos de usar, mas não é bom ficar guardada.”
A outra obra foi o filme “Projeto Flórida”, que está disponível na plataforma Amazon Prime. Muito diferente do que eu imaginava, o filme traz a história de Moonee, uma criança de 6 anos que mora com a mãe num motel nos arredores da Disney, em Orlando. A fotografia é deslumbrante, cores vivas típicas da Flórida, muito sorvete, passeios e brincadeiras, enquanto se descortina uma história forte com elementos que poderiam ser encontrados em bairros periféricos de todo mundo.
Do jeito que ela é contada, podemos sentir como é terna a relação com a mãe, enquanto se desdobram várias questões sobre maternidade, desamparo e desigualdade social. Quando as coisas ficam mais pesadas, é nossa mente adulta e experiente que entende o que aconteceu, nada fica muito evidente pela perspectiva da menina, como na cena em que um senhor é posto para fora das dependências do motel, pelo gerente, enquanto a menina assiste de longe, brincando sobre uma mesa de piquenique. Ou ainda quando um pai se desfaz de todos os brinquedos do filho, uma cena que poderia ser triste, mas que parece uma festa para as crianças que herdaram os brinquedos.
A história entrega muito mais nuances sem necessariamente ser direta. Acabei quebrando minha regra de ouro de não assistir filmes tristes, porque as cores alegres e a leveza inerente a infância deram a chance de tocar fundo sem necessariamente me abater. Terminei de assistir atordoada sem saber o que tinha achado. No fim das contas, os dois autores me enganaram certinho ao colocar as meninas para contar histórias que chegaram de fininho, feito criança arteira, ao meu coração.