Newsletter @milamesmo 2ª Edição
"e quando os braços não prendem, o amor faz uma cócega, o amor desenha uma curva, propõe uma geometria."
Carlos Drummond de Andrade
Mantendo meu projeto original de fazer newsletters sem periodicidade ou forma definida, essa veio bem curtinha, só com o que está saindo quentinho da minha cabeça. Uma recomendação (sem spoiler) de mais um programa da Netflix e um pouco do que eu senti quando soube da violência sofrida pela rapper Megan Thee Stallion. Espero ouvir notícias do que acharam. Boa (mais uma) semana.
#paratodosverem: Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Meu algoritmo tropeçou em alguma coisa e, esses dias, me recomendou dois programas na Netflix sobre relacionamento. Num deles, uma especialista em casamentos arranjados da Índia faz as coisas acontecerem (ou não) para uns jovens que estão a procura de alguém para casar. Seja por vontade própria ou pressão da família. “Casamento à Indiana” reafirmou o que eu já sabia: quando se procura um par, certas coisas são universais, ainda que por meios diferentes.
Nesse mesmo clima, o que aqueceu meu coraçãozinho mesmo foi “Amor no espectro”, produção australiana que traz a história de várias pessoas com autismo também em busca do amor romântico. Além de casais que já estão juntos há um tempo, absolutamente apaixonados. Um prato perfeito para um shipadora compulsiva, como eu. São cinco episódios, apenas, que deixam a gente querendo mais.
Além da refrescante representatividade, que nos dá a rara oportunidade de ver casais com deficiência contando suas histórias e sendo felizes, “Amor no Espectro” me ganhou pela forma como buscou contar a vida dos participantes sem muita firula, deixando com eles mesmos a tarefa de ganhar o espectador, com sucesso. Fica claro quando a série aborda a família num papel bem coadjuvante, colocando as pessoas com autismo no centro de suas narrativas. As famílias aparecem conversando, dando suporte, mas a intenção é sempre de proporcionar o máximo de autonomia. Há apoio de especialistas em relacionamentos e dinâmicas para fazer as coisas funcionarem da melhor forma possível, mas no final das contas, quem está realmente no centro das escolhas são as pessoas que estão se relacionando.
Para isso acontecer, é preciso pensar em uma sociedade que vê o indivíduo com deficiência como alguém que, mesmo precisando de suporte, de ajuda e de algumas ferramentas de diversas ordens, será o dono das sua vida. E isso reflete em como o indivíduo terá sua dignidade garantida, ao conviver com as suas escolhas e especificidades.
Também me chamou atenção, como os produtores fizeram uma boa edição que equilibra histórias de sucesso com decepções, questões relativas ao autismo e também coisas comuns a todas as pessoas, mesmo sem deficiência.
Lembrou muito um outro programa, pelo qual sou completamente apaixonada: The Undateables, que infelizmente não está mais disponível na Netflix, mas vale muito a pena procurar por aí. Nele, pessoas com diferentes tipos de deficiência mostravam como era procurar o amor através de uma agência de namoro especializada.
Ainda assim, uma das escolhas do programa me deixou pensativa: só há pessoas com deficiência se relacionando entre si, ninguém sem deficiência aparece dentre os pretendentes. O que levanta uma questão que eu pretendo trazer aqui qualquer dia desses, sobre essa ideia introjetada que pessoas com deficiência deveriam procurar seus semelhantes, apenas, quando o assunto é relacionamento amoroso. Esse pensamento, pelo menos na minha vivência, acaba por nos separar mais do que aproximar. Mas esses questionamentos ficam para outra hora. Por enquanto, botem a culpa em mim caso o algoritmo estranhe tanto amorzinho em seu perfil, mas assistam.
#paratodosverem: Separador de texto com a ilustração de um diamante em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
A rapper Megan Thee Stallion me ganhou desde a primeira vez que a escutei, numa das edições do Tiny Desk Concert, no fim do ano passado. A sua simpatia, o flow e as letras cortantes fizeram ela se juntar a lista de outras rappers que gosto e colocam meu astral lá em cima sempre que ouço.
No começo de março, Megan lançou o álbum Suga, cheio de música que me pegou. Junto com o restante da discografia, virou minha trilha da quarentena. Não satisfeita, fez um remix da faixa Savage com sua conterrânea e rainha do mundo, Beyoncé. Megan, então, se estabelecia como essa pessoa que só traz alegria a seus fiéis seguidores.
Infelizmente, na madrugada do dia 12, Megan foi ferida nos pés por um tiro, no bairro onde mora, em Hollywood. Segundo noticiado,ela tentava sair do carro onde estava com uma amiga e um homem, que teria efetuado o disparo. Soube da notícia por um post no instagram da própria Megan desmentindo os boatos de que havia sido presa, mas sim que tinha sido vítima de uma violência.
Meu coração ficou apertado, como fã mas ainda mais como mulher. Com sua música, Megan representa fala sobre ser dona de si, de sua sexualidade, seu sucesso. Nos dias que se sucederam, muitas coisas foram especuladas e Megan, pela primeira vez desde o acontecido, posta no twitter o quanto estava incomodada com o fato de que aquele assunto, que tanto a machucava, tinha virado um tópico onde muitas pessoas se sentiam à vontade em inventar boatos, fazer piadas e até mesmo a culpavam, afirmando que o comportamento dela teria atraído pessoas como o homem que supostamente a feriu.
Além de ter que lidar com a violência em si, deparar-se com aquelas reações parecia estar machucando ela pela segunda vez. Em um momento tão delicado, ainda se recuperando, ela sentiu a necessidade de vir a público demonstrar sua indignação sobre o quanto sua dor estava sendo desmoralizada.
Dias se passaram e Megan fez uma live na qual fica visível o quanto estava ainda muito assustada e se recuperando na cirurgia que fez nos pés. Um determinado trecho do vídeo chamou minha atenção quando Megan, bem emocionada, cita o fato de que com apenas 25 anos, órfã e ainda tentando superar a morte da mãe, achava que estava cercada daqueles que queriam vê-la feliz. De certa forma senti em seu choro a mágoa por estar, ainda que involuntariamente, justificando não ter se colocado naquela situação e o quanto se sentiu desrespeitadas por todas as mentiras sobre ela estar protegendo o agressor, quando na realidade as pessoas criaram uma expectativa de uma resposta imediata ao acontecido.
É inevitável pensar o que faria, uma vez na situação de Megan. Como eu, por exemplo, que sequer poderia sair do carro quando ameaçada por alguém que eu confiei. E o quanto poderiam colocar na minha conta o dever de me proteger, como se nós,mulheres, não passássemos muito tempo das nossas vidas pensando em como ficar menos a mercê da crescente violência. Quais seriam as piadas feitas, as mentiras, a culpa colocada em mim, como constantemente acontece com cada uma que sofre uma violência, mesmo não sendo famosa. De onde viria, porque certamente viria, o coice depois da queda.
Na mesma live ela tranquiliza seus fãs dizendo que isso não vai mudar a forma como ela emana energia boa por aí. Eu sigo aqui procurando os sinais em suas redes sociais de que ela está se recuperando bem, que tem achado pessoas que a apoiam, como Rihanna e Lizzo, outras mulheres incríveis que também já estiveram nesse lugar, tanto de sofrer violência física, quanto de receber ofensas gratuitas em redes sociais. E espero que ela não precise ficar revisitando a dor de sofrer uma violência cada vez que entra em contato com o mundo a quem ela presenteou tanto esse ano com seu talento.