Newsletter @milamesmo 1ª Edição
“Também essa palavra é supérflua, pois não falo por causa dela, mas porque eu preciso.”
Jung
Decidi que havia chegado a hora, talvez eu não tenha decidido sozinha. O que eu sei é que bateu essa urgência de escrever. Ultimamente o tempo deu uma derretida. Como aquele relógio na pintura de Dalí, ele tá escorrendo, não fluindo. Tá derramando, não despejando. Já se passaram 4 meses desde que começou a pandemia. E, ao mesmo tempo que parece que vivemos isso há muito tempo, os dias passam correndo. Mas no mau sentido. Correndo como aquele ônibus que tinha que pegar. Correndo como algum desordeiro que se bate e derruba suas compras na rua. Ou, pior, como uma barata. Os dias passam rápidos e horríveis como uma barata voadora.
E entre esses dias que esticaram o sentido do tempo até deformá-lo, algo aconteceu. Foi literalmente por um dedo de diferença dos outros dias em que eu transbordei de vontade de escrever e não o fiz. Foi por um dedo. Como quem colocou peças de dominó num desses experimentos e só precisa de um dedo pra fazer funcionar uma roda que derruba uma cadeira, que faz rolar uma bola que bate num graveto que derruba um balde de água fria numa boneca de pano.
Um espasmo no dedo indicador deu início a essa ideia da newsletter. Espasmos não são necessariamente comuns a minha deficiência, causada por amiotrofia espinhal, mas como tudo na vida: pode acontecer. E aí eu reuni uma coragem que eu nem sabia que precisava, muito menos que tinha.
O dedo a tremer colocou ali, palpável, a necessidade que as palavras fossem postas. O dedo a tremelicar era a mão queimando se não escrevesse. Por muito tempo, eu quis escrever. Por muitos motivos, alguns deles que eram impeditivos e incentivos ao mesmo tempo. Aquele dedo me dizia que escrever não era um ato que precisava de motivos, ele era o motivo em si mesmo. E foi por isso que eu resolvi me arriscar.
Portanto, seja bem vindo. Aqui versarei sobre quem eu sou, mas, às vezes, sobre quem você é também. Sobre deficiência, sobre ser mulher de 30 e poucos anos, sobre beleza, sobre angústia, agrestias, baianidades e invencionices. E, por favor, fique a vontade para me responder me falando o que acha. Abaixo, nesta primeira edição, falamos sobre o movimento #VerificaPCD no Twitter e um texto curto que fiz sobre paciência.
Um beijo grande.
#paratodosverem Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas no centro, uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Há alguns dias, pessoas com deficiência iniciaram um movimento para questionar ao Twitter por que tem tão poucos de nós nos seus perfis verificados. E percebeu-se que estava rolando uma tendência de verificar pessoas que falam sobre luta de minorias, assuntos com pouca representatividade e que influenciam na vida de muita gente. Porém, pessoas com deficiência tinham ficado de fora dessa leva.
O movimento não escolheu representantes, mas buscou falar por todos. O resultado foi bom: 10 perfis de pessoas com deficiência verificados. Eu não fui um deles, mas desde o início eu estava me juntando a esse pedido pelo grupo, que tem um significado maior do que qualquer um de nós, separadamente. Há ainda o que se discutir em relação à representatividade dentre esses nomes, mas já demos um grande passo.
Muito do que aprendi sobre deficiência durante todos esses anos foi no Twitter. E considero a plataforma onde eu mais ensinei também. Especialmente usando sua principal característica, a de microblog, o jogar fora meia dúzia de palavras contando da minha vida, das minhas coisas, reclamando de algo, peneirando algum sorriso no meio do dia, mas principalmente escutando pessoas de todos os tipos e que falam de lugares diferentes. Pessoas que, provavelmente, não entrariam na minha bolha em outras redes sociais.
Ainda que estejamos cada dia mais discutindo um pouco sobre cada grupo minoritário, sentir que falta, em cada uma das lutas desses grupos, um espaço para pessoas com deficiência terem mais voz é um incômodo antigo. Vejo demandas serem postas sem dialogar com o que nós podemos contribuir. Feminismo e direitos reprodutivos: o que mulheres com deficiência têm a dizer? LGBT e liberdade sexual: pessoas com deficiência que têm sua sexualidade tão vigiada, como que ficam? Isso só para começar a pensar alguns exemplos, e que certamente poderemos desenvolver em algumas das próximas edições desta newsletter.
E era esse meu maior objetivo ao ajudar o #VerificaPCD a dar certo: fazer com que pessoas com deficiência ganhassem mais destaque para serem escutadas, falando de suas rotinas, de suas ideias, do que produzem e sentem. É em uma timeline diversificada que você pode achar respostas para perguntas que nem sabia que tinha. Chega lá no Twitter e vê na tag #VerificaPCD pessoas para seguir e depois me conta.
#paratodosverem: Separador de texto com uma ilustração de ondas em traços simples, com fileiras de bolinhas no lado direito do lado esquerdo da ilustração.
Nesse mesmo tema “defiças organizados”, vale muito a pena assistir ao documentário da Netflix “Crip Camp- Revolução pela Inclusão”, lançado há uns meses. Já assisti várias vezes e sempre me arranca os melhores sorrisos e lágrimas. Michele e Barack Obama são os produtores executivos do documentário que conta a história de um acampamento de verão, nos Estados Unidos dos anos 70, feito para pessoas com deficiência. E é lá que nasce o movimento que fez surgir as primeiras legislações sobre inclusão, mudando assim, todo o curso da história dessa luta.
Poderia passar aqui horas e horas falando do quanto eu gostei da produção, mas, certamente, o que mais me marcou é o quanto estar cercado por pessoas iguais a você pode ser poderoso. A forma como no acampamento existiam monitores com deficiência, como tudo era decidido de forma democrática entre todos, e, principalmente, como se pode ver ali aproveitando livremente pessoas com corpos tortos, vozes arrastadas, movimento descoordenados, ligadas umas às outras pelas suas diferenças e semelhanças, e de que forma aquilo tudo junto se transformou no início de uma mudança que me permitiu estar aqui hoje, existindo.
Fiquei igualmente extasiada em ver a participação do Panteras Negras em um dos mais importantes atos de resistência do movimento de pessoas com deficiência retratados no documentário e como isso ressalta a importância do diálogo entre os grupos oprimidos, como falamos no texto sobre o #VerificaPCD. Muito me surpreende como uma passo enorme na construção dos direitos sociais, que reverberou para todo o mundo, pode não ser tão amplamente conhecida, bem como o diálogo entre as lutas.
Sem me alongar mais, só deixo, de novo, a recomendação. E o convite para se impressionar: Como um evento tão importante na luta em defesa dos direitos das pessoas com deficiência ainda é tão pouco conhecido pelo público geral? E como as narrativas trazidas pelos personagens conseguem demonstrar, ao mesmo tempo, o quanto caminhamos e o quanto algumas coisas seguem bem parecidas com o que vivemos àquela época.
#paratodosverem: Separador de texto com a ilustração do rosto de MIla em traços simples, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas do lado esquerdo.
Algumas habilidades são solitárias. Não gostaria de ter trocado lá atrás, no meu DNA, a habilidade de ser paciente, mas me deixa um tanto só. Pensando melhor, não sei bem se já veio escrito ou se anos de espera fizeram crescer essa adaptação no meu corpo, um tanto diferente dos outros. O ser humano, quando se sente ameaçado, é do fugir e do lutar. Acontece que nem sempre. Se você não tem para onde ir ou não tem forças para lutar, o que te sobra é uma pele que se adapta e se modifica a cada contragosto, como um camaleão.
Não importa se tecida fio a fio ou inerente, a paciência não tem lá muita valia aos olhos do outro. O elogio à paciência vem sempre com um “eu não sou como você”, o que quer dizer, em outras palavras, “não preciso me adaptar”. Uma espécie de “Você que lute”, ou, no caso, não lute, use sua paciência como forma de domínio. O paciente é acima de tudo um solitário que nasceu para suportar parado e por mais tempo. Enquanto os outros lutam ou fogem. O paciente que se lasque. Que abra uma ferida no meio de sua casca mutável para entrar a poeira levantada pelo movimento dos outros corpos.