Newsletter @milamesmo 20ª Edição
“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder.
Vai todo mundo perder.”
Dilma Rousseff
Tenho gostado mais desse formato em que escrevo um texto só em cada news, mas provavelmente a próxima versão venha um pouco diferente. É a última enviada pelo mailchimp e a próxima vou migrar para o substack. Não vai mudar nada para você leitor, não precisa fazer nenhuma mudança, só achei melhor avisar e lembrar que é bom salvar meu email como contato para minha cartinha não ser confundida com spam. Espero que estejam todos bem, vivendo já me parece de bom tamanho, para a pauleira que foi 2022.Que 2023 chegue mais gentil e próspero para todos nós.
Até a próxima e comentários são sempre bem vindos :)
#descrição: Separador de texto com a ilustração de uma cachorro galgo em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Ravi, meu cachorro, é o verdadeiro reizinho dessa casa. Um galgo italiano amarelo e gordo que se derrama em todos os colos, sofás e camas da casa, sempre que pode. A escolha de qual cama ocupar depende da companhia, do sol que adentra a janela, da quantidade de almofadas disponíveis. Galgos são especialistas em conquistar camas, veja o quanto nesse vídeo.
No entanto, Ravi também não dispensa a sua própria cama. Sempre lá, no mesmo lugar da sala, não divide com ninguém, ainda que todo mundo tenha que dividir a sua cama com ele. Naquele território sem competição, Ravi escolhe descansar. E, das muitas vezes em que eu sinto inveja dele, esse momento sem qualquer preocupação com disputa é o maior deles.. A capacidade de Ravi de se retrair a um lugar livre de disputas por territórios.
É o que mais tem me feito falta. Nos últimos anos, a todo momento, estamos em disputa. Se eu pudesse reduzir 2022 a uma palavra, seria essa: disputa. Desde a polarização, sobre a qual estamos cansados de falar, não há assunto sobre o qual podemos discutir sem disputar um espaço. Ideias não são apenas ideias, elas mostram um lado, descortinam uma série de características sobre alguém. Existe uma certa pressão para que se diga de que lado está em todas as questões que se apresentam, parece não existir o equivalente a caminha de Ravi onde podemos repousar sem ter que disputar um território.
É cansativo quando se tem isso como premissa da existência. Quando a ideia que só se pode existir na ausência do que é o outro. Sem o aniquilamento daquele que se opõe a mim, eu perigo me extinguir. E as conversas se dão sempre no sentido que não basta apenas tentar melhorar o que eu tenho, só melhoro enquanto consigo piorar o que não sou eu.
Da mesma forma, parece que as coisas são feitas com tão pouco cuidado porque se entende que, se algo der errado, é só resolver na briga depois. Em abril eu sofri a violência de ter minha cadeira extraviada por uma companhia aérea, a LATAM. Cheguei em Salvador sem minha cadeira, fiquei horas, e parece que a única forma de resolver essas questões é no litígio. “Procura a justiça”, é o que eu escutava incessantemente de quem queria me acolher. E eu até entendo a preocupação e foi o que eu fiz, mas será que não dá para almejar um mundo em que eu não precise brigar para ter o fundamental direito de ir e vir, o direito à integridade física respeitado (uma vez que minha cadeira é tão essencial ao meu bem estar físico) sem que eu tenha que lidar com uma disputa por isso? Meu processo hoje tramita na Justiça Comum, lenta que só ela. Se eu quiser que esse quadro tão constante de desrespeito às pessoas com deficiência por parte das companhias aéreas mude, terá que ser assim? Numa disputa em que eu perco muito mais do que quem feriu meus direitos, pois preciso de uma cadeira nova, que desde o incidente não é mais a mesma, e a companhia aérea segue a todo vapor, sem ser incomodada.
O tema disputa me pegou tanto esse ano que eu conseguia enxerga-lo em todas as produções que consumi. A competição estava sempre ali, à espreita, e envolvendo muito luto porque onde há alguém que ganha, há sempre quem perde. Senão os dois.
Foi assim com The Bear (O urso), série curtinha disponível na Star+, na qual o renomado chef Carmy herda o dining meio falido de seu irmão, que se suicidou. Lá recebe a ajuda de Sidney, uma chef com fome de crescer para derrubar seus insucessos passados. O primo de Carmy, que era muito ligado com o falecido dono e que também trabalha no restaurante, vai dificultar sua vida ao máximo porque vê todas aquelas mudanças como uma ameaça. Nesse ambiente estressante, como normalmente é uma cozinha, está também outros ingredientes perigosos para uma disputa: o luto, histórias familiares, diferenças geracionais e várias culturas distintas que ali precisam conversar. Na série, tudo parece que vai desandar a todo tempo, não se vê futuro, parece que ninguém vai sair sem ferimentos da guerra que se forma, que só começa a se desmanchar quando caminhos mais colaborativos vão sendo construídos.
Outro momento em que eu vi o tema disputa ali na minha frente foi no ganhador do oscar “Ritmo do Coração” (CODA). Vimos nascer na personagem principal um desejo de existir em algum ambiente onde ela não precisasse disputar território com os demais membros de sua família, sendo ela ouvinte e os demais, surdos. Ao perseguir o sonho de cantar, Ruby Rossi encontrou resistência de sua família, especialmente sua mãe, ora porque envolta em suas próprias questões, ora porque não alcançava o significado que teria para ela, pois não vivenciava. O florescer de sua filha, em um ambiente em que ela não navegava, parecia ameaçar o que ela sempre entendeu como sendo o melhor para todos. Ao assumir que outras formas de viver a vida poderiam ser interessantes para a sua filha ouvinte, a mãe se sentiu, talvez, ameaçada em sua existência. A frequente necessidade de se autoafirmar em um mundo que tenta frequentemente anular a existência de pessoas com deficiência, cria uma força reativa nela, em que ela não aceita que em seu ambiente familiar algo tão do outro. Se algo tão “de ouvinte” passa a ser o objeto de atenção da sua filha, a mãe passa a não fazer parte daquele mundo.
E isso se aplica a outras formas de existir no mundo que se sentem constantemente espremidas, pressionadas. Uma vez numa situação de ameaça, sentindo que estamos sendo diminuídos, a reação é inevitável. Muito frequentemente, a raiva é a mais diligente dos sentimentos e acende o alerta, usamos ela para nos mostrar arredios, reativos, indisponíveis ao diálogo. O que queremos, diante das ameaças, é parecer maior do que somos, como um bicho que eriça os pelos, ainda que por baixo a carne continue tão mole e penetrável quanto antes.
Viver nesse estado de eterna disputa por um espaço pesa. Não dá para abandonar os territórios conquistados e explorar outros, avançar, sob pena de sermos invadidos novamente pelos nossos opositores. Estamos sempre ali vigiando o pouco que conquistamos e repetindo as mesmas frases. Sem tempo para reflexões mais profundas, sem descansos restauradores. A soneca que faz Ravi roncar em sua caminha exclusiva nunca chega para aqueles que estão sempre precisando se afirmar.
Alguns de nós, no entanto, não nasceram para o combate. Acho que estou nesse grupo de pessoas. Pode ser que tenha a ver com o fato de ser filha caçula de quatro irmãos, temporã, filha única de papai, acostumada a ter muito? Pode. Eu me vi pressionada a competir por espaços esse ano e não gostei de quem eu me tornei enquanto resistia bravamente a mais uma tentativa de invasão. Durante minha vida, tive a oportunidade de ver muita coisa florescer em ambientes mais livres de competição e isso que eu gostaria de testemunhar mais frequentemente. Num paradigma da abundância, onde tem para todo mundo, não em um que só cresce quem subtrai do outro.
Um rico exemplo de um desses ambientes férteis de colaboração eu tive esses dias, naquele evento sobre newsletter que contei para vocês na última edição. Um monte de gente bacana com gostos similares se juntou para fazer uma das coisas mais organizadas e frutíferas que eu já tive a oportunidade de participar na vida. Gente que não estava querendo aparecer mais que o outro, discordar mais, falar mais, subir no ombro de alguém para ficar mais alto na multidão. (Sim, eu tenho uma birra com quem faz isso, entendo o apelo, mas tem gente atrás).
No evento “O texto e o tempo” passamos um fim de semana aprendendo e conversando sobre algo que gostamos, que é a escrita, num campo que é relativamente novo, mas que reúne gente muito experiente em tocar as pessoas com as palavras. Em ambientes assim, me sinto muito mais forte do que naqueles que preciso parecer maior para me defender.
E eu não gostaria que esse grupo lindo que se formou virasse exceção. Tenho visto não só na vida pública, mas também cá nas minhas relações interpessoais, que quem recebe mais atenção é quem consegue gritar mais alto, demandar mais energia. De maneira que que o outro tenha menos para gastar com o que o quer que seja. Num mundo onde visualizações e engajamento é a régua de sucesso, vence sempre quem faz de tudo para ser visto, seja no público ou no privado. Algumas redes sociais, como o twitter, premia com muitos seguidores quem constantemente está buscando polêmica vazia, que vai fazer multiplicar opositores e não adianta avisar dos perigos desse tipo de interação, ninguém ouve. O ficar quieto no seu canto, digerindo, pesquisando, elaborando é tido como algo de menor importância. Os sentimentos que crescem no silêncio, no diálogo, se sobressaem menos do que aqueles que irrompem do atrito, da contenda.
As vezes, a dificuldade de viver sempre batalhando parece ser antinatural, uma invenção de homens que não souberam a hora de parar. Vi um biólogo que sigo no twitter explicar justamente sobre como a teoria da seleção natural de Darwin se baseia numa ideia de seleção por competição. Mas que a natureza, no alto da sua sabedoria, demonstra em diversos comportamentos que a competição não é o único motor evolutivo.
Acredito não estar só nessa fase de estar cansada de não poder descansar. Mesmo depois da festa que foi ter o nosso algoz retirado da presidência, lidamos com os inconformados, os questionamentos descabidos sobre as urnas. As fake news de Lula ter morrido e ter sido substituíto tal qual um Paul McCartney ou uma Avril Lavigne. O bolor de gente que grudou nos muros dos quartéis. E eu que desejei tanto que chegasse a Copa do Mundo, para idolatrar a única disputa que eu tenho interesse, atualmente, veio a galope também uma cacetada de outras disputas narrativas que a gente até sabia que viria, mas que eu sinceramente dispensava.
Me despeço por aqui como quem não sabe mesmo como terminar de falar sobre um assunto que parece que nunca termina. E que talvez seja esse meu grande incômodo. A noção de que até parados estamos sendo arrastados por essa necessidade competir pelas coisas, que não tem para onde fugir, no máximo, tem como tentar valorizar outros modos, como eu venho tentando fazer cada vez que escolho enaltecer quem está do meu lado mais do que reagir a quem não está. Disputa boa mesmo, agora, só resta a indesejável Argentina e França na final, olhando o copo meio cheio de estar satisfeita sabendo que um deles vai perder.