Newsletter @milamesmo 18ª Edição
A edição de hoje é sobre uma pessoa muito especial que eu gostaria que todo mundo conhecesse porque vivemos tempos em que é sempre bom conhecer quem faz acontecer. Espero que gostem e até a próxima!
#descrição: Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Eu temo que a palavra esperança se torne uma dessas que a gente toma ginge só de ouvir, de tanto que foi dita na hora errada. Porque acredito que a esperança combina mais com o fazer do que com o falar. Esperança é aquilo que ilumina os olhos de quem sente, que fortalece a mão de quem dá. Tem sorte na vida quem encontra com pessoas que sabem tecer esperança, como quem tece uma grande rede, onde a gente descansa para, no dia seguinte, continuar a caminhar.
Tenho a oportunidade de conviver com algumas dessas pessoas, mas hoje especialmente quero falar de Sr. Ferreira, da Ortopedia Alta Forma, que eu conheço desde 1998. Tenho sentido algumas dores esses dias e ele é para quem sempre recorro quando preciso de alguma correção postural na minha cadeira, um colete, uma órtese. Hoje, outubro de 2022, já com pouca esperança de fazer essas dores que ando sentindo sumirem, fui falar com um especialista em tecer novas esperanças.
Uns poucos minutos e ele conseguiu resolver meu problema, como sempre, ajustou o encosto de cabeça, mediu a nova almofada e parece que tudo foi se ajeitando. Brinco com minha amiga Patrícia, que vem de Brasília para fazer sua órtese de tempos em tempos, que Sr. Ferreira é como aqueles crush que somem mas bastam duas palavrinhas e pronto, a gente lembra porque sempre dá corda. É um dos nossos passeios de férias ir na Alta Forma juntas, coisa que a Covid me impediu de fazer na sua última estadia aqui. O diferencial de Ferreira, para nós, está em saber escutar o que a gente precisa e com duas palavrinhas a gente vê que ele sabe o que fazer com seu trabalho. Mesmo com todos os seus cursos, suas viagens, seus muitos anos de experiência, Ferreira não se vê acima de tudo, ouve seus pacientes porque eles são os verdadeiros detentores do saber sobre seus corpos.
Depois de meu encosto ajeitado, quis ficar ali e perguntar como Ferreira está, sua saúde, seus projetos e ficamos conversando por algumas horas. Voltamos no tempo, quando eu só tinha 12 anos e ele atendia nas Obras Sociais Irmã Dulce fazendo próteses, órteses, correção postural em cadeiras. As ferramentas, as barras, o gesso, os espelhos, tudo muito parecido com o que eu já estava acostumada a conviver. Havia, porém, uma ferramenta diferente de todas as outras e que naquele momento eu ainda não era capaz de reconhecer, mas que hoje eu sei que é o que coloca Ferreira num lugar tão especial para aqueles que o encontram: a noção de que seu trabalho é tecer esperança para quem o procura.
Quando fiz meu primeiro colete com ele, eu não tinha muita esperança que pudesse dar em alguma coisa menos desconfortável, dado ao histórico dos anteriores. Mesmo assim, tentou e fez os coletes que usei por 15 anos, reformando o que dava certo, eliminando o que não dava. Vivi minha adolescência, fiz faculdade, com as modificações na cadeira e com o pequeno conforto que os coletes me proporcionaram. Se ele pudesse ver uma foto de cada pessoa para quem ele trabalhou realizando tudo aquilo que nem sabia que seria possível, mas que se tornou, porque ele fez ser.
#descrição: foto de setembro de 2022, estou sentada na minha cadeira de rodas tirando foto no espelho da Alta Forma em meio às barras de reabilitação, próteses e posters da cidade de Salvador nas paredes.
Ferreira sabe que, para muitas pessoas que o procuram, aquele mundo da deficiência é algo novo, uma amputação que acontece num acidente ou por diabetes, por exemplo. Eu, mesmo tão jovem, já tinha alguma experiência “no ramo”, porém, boa parte de quem o procura está vendo aquele ambiente como algo assustadoramente novo. É a partir daquela experiência, muitas vezes, que a pessoa vai entender sua vida a partir dali, o que ela vai poder fazer e não vai, que desdobramentos terá, como vai ser apresentada ao mundo.
Quando conversamos, ele tinha acabado de participar de uma licitação para fornecer cadeiras de rodas, modelo simples, mas com o básico para o que precisa, trava de segurança, apoio de pés ajustável, almofada básica, com um valor de 600 reais. Outro concorrente mostrou a cadeira mais básica que tem, dessas de lona e alumínio, sem qualidade alguma, por 150 reais. Disse que preferia perder mil vezes a fazer a prefeitura, que não tem noção do que é viver em uma cadeira assim, fornecer algo do tipo para pessoas que, muitas vezes, só terão aquela cadeira como chance de sair de onde estão.
Lembrei de quando minha mãe fraturou a coluna, o médico que anos antes tinha operado a minha coluna, Dr. Sérgio, confiou a Ferreira fazer um colete para ela. Assim como aconteceu comigo, anos antes, Ferreira mandou sua equipe até o hospital para confeccionar o colete com o qual minha mãe sairia de lá. Na minha vez, aquela parafernalha de gesso e molde, na UTI, tinha um gostinho de casa. O geladinho que depois esquenta, a meleira, a paciência, até a minha dor, tinha a ver com o que eu já conhecia. Quando aconteceu com minha mãe, mesmo ela já familiarizada, parecia novo. Ela estava agora do outro lado, como paciente. Vê-la fragilizada naquele momento, sendo cuidada pela equipe da Alta Forma, me deu o alívio de que ela estaria adentrando aquele mundo de limitações guiada por alguém, de fato, preocupado com seu bem-estar.
#descrição: foto de dezembro de 2012, estou de costas sentada toda descabelada numa maca de hospital com um colete de coluna cheio de furinhos e com fivelas laterais. Meu médico e minha irmã aparecem me segurando, um de cada lado.
Esse lugar de se ver com limitações, numa sociedade que quase não mostra pessoas assim conquistando coisas, pode ser muito duro. Enquanto contava sobre o início de sua carreira, Ferreira me disse que a expectativa de vida de pessoas amputadas variava entre 10 e 3 anos, a depender da altura da amputação. Segundo ele, eram pessoas que, ao se verem sem os membros, se viam excluídos de todos os seus outros direitos. Pessoas que ficavam isoladas. Se pedissem um copo d’água tinham que esperar pelo outro. Podia não ser só por maldade ou por desatenção, mas num mundo em que se vive sempre tão cheio de afazeres e distrações, cuidar do outro muitas vezes fica em segundo plano. Não era somente uma questão da saúde física, era a exclusão, a sensação de inadequação, que diminuía a expectativa de vida de um amputado.
Foi então que Ferreira percebeu que precisava fazer alguma coisa que estivesse a seu alcance. Na época, ninguém queria fornecer próteses pelo SUS, o valor da tabela simplesmente não compensava financeiramente. Para tornar possível sua vontade de mudar aquele cenário, Ferreira fez administração, contabilidade, enquanto continuava a estudar sobre reabilitação. Conta que a primeira entrega de próteses foi um grande evento no estado. Somente 25, naquele momento. O seu esforço fez o mercado entender que era possível, os órgãos exigirem, o estado prover. Hoje, ele diz que devem ser cerca de 5 mil pessoas beneficiadas mensalmente por próteses aqui no estado.
Pergunto a Ferreira se ele se dá conta da vida de quantas pessoas ele transformou durante esses mais de 20 anos, percorrendo a Bahia. Com os seus olhos sinceros, mas humildes, ele diz que sim. Que viajou tanto porque sentiu que precisava treinar regionalmente as pessoas até para aprenderem a prescrever os aparelhos, para que não se perdesse na burocracia. Ainda hoje, há quem sequer saiba dos seus direitos a coisas assim, como órteses ou uma cadeira de rodas. Ainda há muita espera e etapas, torcemos para que um dia seja mais fácil. De toda essa espera e dos pormenores Ferreira não pode cuidar. Mas ele abraça o que pode, até demais, eu disse a ele em nossa conversa, reforçando que também precisa desacelerar para descansar e continuar a tocar seus projetos, sua nova loja a ser inaugurada em breve, e mais outros que eu quis participar, de cara. Projetos que propõem, como sempre, ser um facilitador entre o que as pessoas querem e o que a tecnologia assistiva atual tem a oferecer.
Ao ouvir as histórias, fui percebendo que tem impresso nelas a marca registrada de Ferreira: a capacidade de escutar. O sucesso no empreendimento da esperança que ele forneceu a mim e a tantas outras pessoas foi a noção de que cada um, em seu lugar, é capaz de falar sobre onde dói e o que conforta. Seu conhecimento e suas ferramentas vão trazer o conforto e a autonomia que servirão de ponte para que alcancem tudo aquilo que seus pacientes ousarem esperançar.
Principalmente quando há uma deficiência em jogo. Patrícia Guedes, a amiga que falei lá em cima e que na foto abaixo vocês podem ver num de nossos passeios à Alta Forma, me disse uma vez que pessoas com deficiência muitas vezes são ensinadas a não ocupar certos lugares, não desejar certos postos. Com mais tecelões de esperança, como Ferreira, teríamos mais chances de planejar, construir e executar nossos sonhos. Ousar desbravar cenários hipotéticos que nos são tomados. E é tudo que eu mais desejo hoje, não só a ele, mas a todos nós. Que haja espaço para o sonho, para os planos e principalmente, para a esperança.
#descrição: foto de minha amiga Patrícia, mulher branca de cabelos cacheados abaixo do ombro usando óculos escuros, camiseta e shortinho, de pernas cruzadas com um sorriso incrível bem praieira sentada numa mão dourada gigante que fica num canto da Ortopedia Alta forma, onde a gente espera ser atendida por Ferreira.