Newsletter @milamesmo 17ª Edição
Essa edição é curta, porém menos que a anterior, estou esperando escrever e mandar no mesmo dia porque tudo que para na pilha de rascunhos tem ficado para trás. Mas veio também um texto inacabado sobre uma das minhas palavras preferidas do baianês. O importante é vocês ainda estarem aqui. Nos vemos na próxima!
#descrição: Separador de texto com uma ilustração de diamante em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Sem exagero, abri uns 7 arquivos diferentes sobre o que escrever para newsletter esses últimos meses. Porém, a sensação é de que tudo que eu tenho para dizer já foi dito em algum momento, se não por mim, mas por outra pessoa. E que pavor de sentir que estou sugando o conteúdo de alguém na cara dura. Já estive do outro lado, o daquele que vê o que compartilhou em alguma conversa, um post, até um tweet despretensioso ser copiado por outra pessoa, sem nem uma mençãozinha e é chato demais.
Tudo bem, eu sei que as ideias estão por aí para isso mesmo, para circular. E não vou aqui defender direitos autorais sobre cada palavra jogada nos mares cibernéticos. O que eu pretendo defender, principalmente para mim mesma, é a que cada um fala de um lugar que é só seu, ainda que puxe de algum conteúdo do outro. Isso não quer dizer, no entanto, que o outro que o inspirou não possa ser apontado como ponto inicial da sua ideia. É honrando o que vem de fora que enxergo o quanto o que eventualmente sai de mim tem o seu valor
Por isso, é importante ter a noção que o que é seu, vem de um lugar único e merece ser escutado. Ainda que pareça repetitivo, ou que outro venha de lá e leve, como se dele fosse. Ter em si a certeza que aquelas palavras foram jogadas no mundo porque você disse quando algo te tocou, te moveu, é o que deveria nos mover a continuar falando.
Ainda que tudo pareça muito doido para que os outros entendam, e isso te pare de dizer, como tem acontecido comigo. Esse freio criativo ficou visível para mim quando tive covid, mês passado. Durante os 10 dias do meu isolamento, parecia que tinha muito tempo na mão e poderia, quem sabe, assistir o que tinha atrasado nas listas, produzir um pouco, jogar as ideias no papel. Mas, a maneira como estamos nos sentindo interfere demais no fio que nos liga ao mundo. Caso esse fio esteja embolado, desencapado, cortado, pelo momento ruim que estamos passando, não adianta: os sentimentos ficarão presos em nós, se amontoando descoordenadamente e perdemos muito daquilo que poderia nos acessar também.
Foi assim que, durante os 10 dias, só consegui assistir a 3 coisas, que pareciam ter nada a ver entre si, mas que fizeram muito sentido agora que consegui desembolar os fios da minha cabeça: o documentário sobre Adriano Imperador (Paramount+) e dois filmes do Studio Ghibli, Castelo Animado e O Serviço de Entregas da Kiki (ambos na Netflix). E a minha explicação nem sei se na verdade chega a explicar, é só uma faísca do que consegui enxergar, de onde vejo. Afinal, escrever, nada mais é que convidar para ver o mundo do meu ponto de vista, nesse caso, o de alguém que estava sozinha dentro de um quarto, doente, sem vontade nem de comer, perdendo o casamento tão aguardado de uma amiga e tudo que envolvia o evento.
No filme “Castelo Animado”, a protagonista é Sophie, uma jovem que trabalha na chapelaria da família e sofre com um feitiço que a torna uma idosa de 90 anos. Em “Serviço de entregas da Kiki”, temos a história de uma bruxinha de 13 anos que sai para conquistar seu lugar no mundo e enfrenta a solidão, o medo, e a necessidade de se manter em dia com suas obrigações.
Daí que o documentário sobre Adriano Imperador, de quem sou fã e já escrevi aqui meus motivos, me fez pensar que ele mesmo daria uma ótima história do Studio Ghibli. Longe de uma narrativa estilo hollywood, que tem um arco do personagem bem desenhadinho, um vilão e um mocinho, a história de Adriano tem muitas camadas. Haja espaço para imaginação, para o sonhar, o sentir luto, se questionar e ter esperança.
Para mim, as três histórias falam sobre solidão e o poder do encontro. O quanto estar com as pessoas certas pode te levar a lugares mágicos, como em Castelo Animado, quando parecia que Sophie estava somente procurando resolver sua própria vida e acaba arrumando a vida de quem estava ao redor. Só com todo o poder emanado pelo encontro para se ter energia para arrumar uma casa, emendar uns laços e salvar umas almas condenadas pelo caminho, com o corpo de uma idosa de 90 anos. Do mesmo jeito, Serviço de Entregas da Kiki e o documentário de Adriano Imperador mostram que se sentir sozinho pode te fazer perder o poder de voar com uma vassoura, como Kiki, ou de ser o imperador, campeão, e te fazer abrir mão de tudo, até que alguém venha a seu resgate e te faça retomar sua história, do jeito que dá. O que para os outros pareceu inexplicável, fez muito sentido para quem já se sentiu em algum momento como Adriano e Kiki, de luto, sozinho, preso em uma vida que até sonhou, mas que se mostrou muito mais difícil do que imaginava.
Talvez eu tenha enxergado o aspecto do quão poderoso é estar entre pessoas ser tratado nessas três obras justamente porque foi no isolamento que senti a força que tem não estar só nessa vida. Especialmente porque o meu isolamento inclui a delicada situação de não poder me isolar por completo. Ter uma deficiência que demanda cuidado e estar com uma doença contagiosa, como o COVID, era algo que me preocupava bastante. Só pude agradecer ter acontecido quando estávamos todos vacinados e o perigo era menor, ninguém se contaminou. Nesses dias em que eu tive a ajuda de tanta gente, minha família, pessoas que trabalham na minha casa, minhas amigas, pude ter mais uma prova de uma certeza bem antiga: As pessoas que a gente encontra pelo caminho, e as que fazem falta quando partem, são o sentido para estarmos no mundo.
Somos feitos do que nos tocou no decorrer da vida, o que saiu das pessoas em direção a nós e o que saiu de nós, à procura de tocar alguém. Por isso que não devemos, e de novo isso é um recado também para mim, nos furtar de dar nosso pitaco sobre o mundo, ainda que pareça mais do mesmo. Vivemos a vida enfileirados junto a uma cerca de madeira, de onde olhamos para todas as coisas presentes no universo e quem está do nosso lado não tem como saber exatamente qual parte da vida conseguimos enxergar pela fresta que nos cabe.
E é também por isso que devemos honrar cada pessoa que resolve narrar o que está vendo pela sua fresta. Cada vez que nos inspirarmos pela visão de mundo de alguém, seja em uma conversa ou em algo mais elaborado, como um livro, é importante não fazer parecer que a ideia foi nossa, puramente. E não estou falando de fazer referências, dentro da norma ABNT, em cada coisinha que se produz, mas sim se comportar como se soubéssemos que que nada que produzimos vem solto. Nasce de nós mesmos, ao mesmo tempo que nasce da capacidade de se deixar tocar pelo outro, que está lá se arriscando, se abrindo, gastando seus recursos, ainda que pareça que faz isso sem pensar, sem dificuldade. Para todos nós, em maior ou menor grau, falar do que sente é um esforço. E esse esforço merece ser recompensado em forma de referência, falando daqueles que te inspiraram, te muniram com as ferramentas criativas para você mesmo poder, agora através de seu olhar, contar o que sente.
Deixar de dar créditos a alguém pode desestimular a continuar espalhando por aí suas visões da fresta do muro que cerca cada um de nós. Pode criar, como tem acontecido comigo, essa sensação de que tudo que eu digo não é lá tão relevante, é mais do mesmo, alguém já disse. Ou pior ainda, pode me deixar por dias parada na ideia de unir Adriano Imperador e Studio Ghibli em um texto que fosse elevadíssimo, sem saber para onde ir, quando às vezes, o teor é só isso mesmo, não tão elevado assim. Apenas a visão de uma fresta no muro, um detalhe que passou despercebido por todas as outras pessoas e que pode não ser relevante para ninguém, mas foi bastante para mim, naquele dias em que estive isolada.
Nem tudo que nos inspira vai ficar guardado numa caixinha catalogada e tudo bem deixar uma ou outra coisa passar sem menção, acontece. Mas me preocupa o quanto o copiar já virou o método de trabalho, de produção de conteúdo, de tanta gente. Às vezes, não sabemos que vento nos soprou aquela informação, mas sempre que souber, não podemos deixar de enaltecer o trabalho de alguém que nos levou a sentir algo, nos moveu a entregar o seu olhar. Sim, pode ser que tivesse ali na nossa frente, que nosso público seja outro, que demos sentido a ideias descoordenadas, mas que nunca deixemos de fazer o exercício de lembrar quem veio antes, quem nos cutucou para ajeitar o foco do nosso olhar. É através do respeito pela visão dos outros que acessamos o valor das nossas próprias ideias, para nós mesmos, e assim combatemos a sensação constante de que o que temos a dizer não é tão importante assim.
#descrição: Separador de texto com uma ilustração de elefante em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Estava olhando o mar quando o silêncio foi interrompido por uma menina, que perguntava à mãe, meio chorosa:
- A gente vai que horas?
- Nestante - a mãe respondeu.
- Eu quero fazer xixi.
- Mas você já não fez nestante?
Foi suficiente para a menina aceitar e já emendar um novo assunto. Pense num poder, é o do nestante. Apesar de parecer tanto com “nesse instante”, significa tudo, menos “esse instante”.
É um instante um pouco mais pra lá, seja antes ou depois do agora. Nestante é onde geralmente estamos presos. Naquilo que nos aconteceu ou no que está por vir, ali dobrando a esquina. O desafio de viver o agora é porque no nestante parece morar tudo.
Nestante é quando iremos, nestante foi o que nos moveu até aqui, estamos sempre com um pé em outra hora. É muito mais possível viver na espera e no lamento do leite derramado agora há pouco.
É bem do baianês essa palavra, por isso não uso aspas. Para mim, ela existe assim mesmo, não é uma abreviação nem um neologismo. Reconheço o nestante como minha casa. Tudo que me alegra ou que me frustra parece de outra hora, não do agora. Até porque o agora, quando vimos, já passou, virou a esquina, foi nestante.