Newsletter @milamesmo 16ª Edição
“Coragem é o medo que disse suas preces."
Anne Lamott
Eu realmente não esperava que minhas edições da news fossem ficar raras assim, mas o início do ano foi intenso demais. Cá estou, com uma edição curtinha, mas cheia de saudades. Até a próxima, que espero que seja mais próxima.
#descrição: Separador de texto com uma ilustração de ondas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Sempre que um punhado de “conselhos para ser feliz” está reunido, lá está ela, escrita de diversas formas, a frase: “a expectativa é a mãe da frustração”. Aquela velha história de viver o presente, abrir mão do controle, tirar os olhos do futuro, carpe diem e etc. Que não se deve esperar muito das coisas, apenas recebê-las como vier. Seja lá como diabos faz isso.
Enquanto não encontro métodos para tal façanha, tenho pensado mais em como precisamos ser gentis com nossas expectativas. Primeiro, porque elas são poderosas e não sabemos bem como contorná-las. Uma espécie de “não pode com o inimigo, junte-se a ele”. Elas exalam um cheiro muito peculiar, que só nós reconhecemos e que vai variando conforme nos aproximamos ou nos afastamos do nosso objetivo. Tentar lacrar as nossas expectativas num saco, para que elas não contaminem nossos planos enquanto os cozinhamos, acaba sendo um trabalho bem mais ingrato do que simplesmente deixá-las ali, perto da janela, onde é arejado e tem luz, com uma certa distância.
Expectativas contam a história não só de onde pensamos em ir, mas principalmente de onde viemos. Trazem nossos medos bem documentados e sabem exatamente o que nos faz falta, por isso desenha cenários tão perfeitos sobre como queremos que seja o futuro.
Nos últimos 2 anos, passamos por uma grande crise de futuro. Não éramos autorizados a querer mais do que sobreviver a uma pandemia. Planos foram tão postergados, modificados, até impossibilitados por tanta perda e luto, que perdemos um pouco do traquejo nessa arte de aspirar pelas coisas. Como se estivesse encoberta por uma lama de más notícias, eu sentia que só poderia voltar a me mexer depois de ter desgrudado a lama toda que ficou na minha pele durante esse período. E eu achei que faria isso no silêncio de casa, até que minha família voltou a fazer planos de viagem.
Um grande pedaço da lama que estava colada à minha pele tinha a ver com ter coragem de fazer uma viagem de navio, que estava programada desde novembro de 2019. Uma viagem parecida já havia sido feita uns anos atrás, então já existiam uma série de pós e contras, passava na minha cabeça todas as expectativas enfileiradas. E mais uma vez, eu tentava dizer para mim mesma: segure a onda.
Mas para uma pessoa com deficiência como eu, somada a uma família grande com interesses diversos, viajar tem a ver com se planejar com antecedência. E nessa hora é que eu brilho. Gosto de desenhar a viagem toda, escolher onde ir, reunir o maior número de informação para que eu possa conhecer tudo da melhor maneira possível. E simplesmente não tem como deixar as expectativas seguras dentro de um cofre, se são elas as maiores tecelãs dos planos, elas que sabem o que eu quero encontrar em cada lugar porque antes de qualquer plano, vem o sonho.
Então, eu fui levada a tirar o pó e voltar a desenhar tudo, enquanto mil coisas aconteciam, inclusive que nada tinham a ver com a viagem. E sim com um coração que estava sedento por desejar.. Ainda enferrujada, consegui equilibrar a expectativa de voltar a viver as coisas que estiveram suspensas com o medo de que nada seria como antes. Que eu jamais me sentiria segura sobre certas experiências, desde ir a um restaurante self service até a um date, como um dia eu já fui.
Até porque aqueles que planejam muito também não estão a salvo do que dá errado, por mais frequente que seja. Na volta da viagem, por exemplo, a companhia aérea perdeu minha cadeira de rodas. E muito embora o medo de que essas negligências aconteçam seja bem conhecido, nada nos prepara para o sentimento de impotência e humilhação ao receber a notícia de que algo tão importante foi largado por aí. Controlar minhas expectativas não me deixa a salvo das maiores frustrações que eu possa ter, por que temer as outras? Por mais baixas que elas estivessem, nada me prepararia para ter que sentar em uma cadeira desconfortável, voltar pra casa e passar 16 horas sem saber se eu teria a minha de volta, do jeito que deixei. Pois então, que me deixem sonhar com coisas boas enquanto lido com a realidade das coisas ruins que me acontecem.
Reunir as credenciais para sonhar de novo, nesses tempos, se tornou muito parecido com viver um romance depois de um coração partido. A lama, para quem já viveu, é bem parecida. Por mais que você acredite que tomou banho e está limpinho para encarar a rua, atrás de um novo encontro, vai ter sempre uma sujeirinha grudada em algum ponto que você não conseguiu observar. E essa sujeirinha vai denunciar que não se está tão pronto assim, como pensava. (Talvez porque não tenha tido quem lhe esfregasse as costas, enquanto lavava a lama).
Romance nada mais é que expectativas criadas por algum elemento divino bem alheio a sua vontade. Encontrar alguém e querer que a pessoa passe ali os próximos dias, meses, ao seu lado, cada dia mais e mais, é o cultivo mais inevitável de expectativas. Sem que você tenha verdadeiramente escolhido, porque paixão simplesmente brota, você passa a esnobar o que já tinha como certo (seja outra pessoa ou a solidão). Larga a mão do conforto de não desejar aquele alguém novo, num cenário completamente desconhecido, e simplesmente se deixa levar por uma vontade.
Muitas vezes, é só o que temos: a expectativa de que talvez, dessa vez, sejamos vencedores. Colocar um cabresto nessa ideia é impedir um vôo que costuma ser rápido, pelo menos para mim, sempre foi. Por que não aproveitar qualquer meio metro de altura que se pode alcançar? Para que ficar com uma correntinha presa ao chão se quando nos esborracho costuma machucar do mesmo jeito depois de certa altura?
É por isso que da próxima vez que eu ouvir que a felicidade tem a ver com manejo de expectativas, eu vou simplesmente ignorar. Felicidade tem a ver com aproveitar cada instantezinho de coisa boa que existe, nem que esteja apenas no campo das ideias ainda. Muita coisa pode e vai dar errado, é preciso estar com algum pouquinho de esperança para ter força para colocar tudo no lugar, novamente. Criar expectativas nos descansa da realidade e faz com que escolhamos algo não por ser o menos pior, mas por ser algo que, de fato, combina com o que desejamos de verdade.