Newsletter @milamesmo 15ª Edição
“The miracle is not
Some magic that you've got
The miracle is you”
Lin-Manuel Miranda
A edição dessa vez veio só mesmo com o texto sobre a animação Encanto e mais umas reflexões que janeiro me trouxe. Quem não assistiu, acho que dá para entender, mas quem assistiu vai gostar mais. Recomendo que assista, o filme foi direto para o topo da lista de filmes Disney preferidos. Espero que estejam todos bem e até a próxima!
#descrição: Separador de texto com a ilustração de uma cadeira de rodas em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Daqui de onde eu presenciei, muita gente teve medo de janeiro. Não só pelos tempos que andam cheio de incertezas, mas porque é o mês que sempre nos olha de nariz empinado, com aquela empáfia do jovem, quando tudo é novo e parece possível de realizar. Ao mesmo tempo, janeiro é o carrasco que nos instiga a trabalhar para dar conta de tudo que o balanço feito no fim de cada ano apontou. O primeiro mês do ano é, ao mesmo tempo, um jovem sedutor e um gerente exigente.
Eu comprei um planner e tudo com a ideia de que era a hora de me organizar para fazer o que eu acho que preciso. Pior ainda, quis me organizar para, veja bem, aprender a ser quem eu quero, partindo do pressuposto um tanto perigoso que não é que eu não goste de quem eu sou, mas que eu posso me organizar para ser melhor.
E até aí tudo bem, desenvolvimento pessoal é importante, mudança faz parte da vida, por isso é bom deixar lugar para caso ela queira chegar. Mas, e quando essa vontade de mudar é constante, cíclica e vem de um lugar meio nebuloso, que esconde uma certa auto-depreciação? Custei a acreditar que estava fazendo isso comigo, justo eu, que gosto tanto de quem eu sou.
Foi então que assisti Encanto, nova animação da Disney e me vi muito no filme, chega fiquei obcecada. Ainda mais pela suas cores, suas músicas (logo de quem? Lin-Manuel Miranda) e pelo jeito que conversou comigo sobre estar sempre voltada para as expectativas dos outros. Especialmente, quando se trata de alguém como eu, que tem características diferentes daqueles que me cercam.
O filme conta a história da Família Madrigal, uma típica família latina, grande, que mora numa casita encantada, onde cada um tem o seu dom. Um milagre foi concedido à matriarca Alma, a abuela, após perder seu marido de forma violenta. Mirabel, uma das netas da família e protagonista do filme, no entanto, não ganhou seu dom, como esperado, ninguém sabe o porquê. Ela é vista como especial por não ser especial. Te lembra alguma coisa?
Se ainda não te lembra nada, uma pessoa que não pode fazer algo no meio de outras que podem fazer, e por isso é vista ora com um olhar de piedade, ora com um olhar de superioridade, te lembra alguma coisa? É isso mesmo. Para mim, Mirabel pareceu todinha com uma pessoa com deficiência dentro de um núcleo sem deficiência. Logo na primeira música do filme, ela mostra o quanto fica feliz de fazer parte daquela família tão mágica e fantástica, mas sem falar de si, porque se sente menor que aqueles que a rodeiam, menos importante para ser citada, por lhe faltar uma parte do que todos naturalmente possuem. E na segunda música já escancara uma dura verdade, deseja o que provavelmente toda pessoa que se sente deslocada, excluída por alguma característica sua, um dia já desejou: um milagre que a transforme em igual aos outros.
Quem tem uma deficiência, em algum momento, ao se sentir assim, de fora, já se perguntou “e se um milagre me mudasse? O que aconteceria se eu conseguisse a proeza de ser como as outras pessoas?” É um pouco como viver eternamente presa em janeiro, com a sensação que podia ser melhor do que se é. E enquanto Mirabel desejava ser como os outros, descobriu que toda a magia da sua família estava em perigo. Não era bem desse jeito que Mirabel queria que se igualassem a ela, perder aquilo que parecia guardar todo seu valor.
À medida em que embarcamos na jornada da nossa heroína, disposta não só a salvar a si, mas a toda sua família e comunidade, percebemos que todas as características que faziam as outras pessoas serem mágicas estavam suprimindo tudo que elas queriam ser de verdade.
Luisa, a irmã mais velha de Mirabel, era tão forte que ficava sobrecarregada com o trabalho braçal de toda a cidade e não se permitia ser vulnerável e ver qualquer prazer na vida além de trabalhar, servir. Pepa, sua tia, que conseguia controlar o clima com seu humor, se deu conta do quanto tinha que suprimir sentimentos, nunca ter altos e baixos, para sempre entregar o céu azul que todos esperam. Até a mais bela e perfeita da família, Isabela, que por onde passava deixava flores, sentiu a necessidade de finalmente perguntar “o que mais poderia entregar se ousasse fazer algo que não demandasse perfeição?”.
Sem esquecer, claro, do personagem mais icônico para mim, Bruno, que com sua música "we don’t talk about Bruno" desbancou a chatíssima “Let it go” do topo de “músicas disney na lista da Billboard”. Ele tinha o dom da premonição, mas sentiu a necessidade de se isolar quando ninguém mais queria ouvir suas previsões simplesmente porque elas não batiam com as expectativas de cada um. Até a tentativa de puxar assunto com a irmã “parece que vai chover”, fez com que ela causasse literalmente um furacão de ansiedade pelo que aquilo poderia significar em termos de previsão. Algo como “atire no mensageiro”, sabe?
Era um emaranhado de gente cheia de habilidade que se via sempre limitada à necessidade de moldar seus poderes ao que era esperado. Toda essa expectativa, no filme, é representada pela matriarca da família, Alma, que desse jeito fica fácil de ser vista como vilã. Em defesa da abuela, no entanto, eu digo que ela nada mais é que a representação da sociedade que reduz todo mundo ao que a pessoa é capaz de entregar, dentro do esperado.
Já faz tempo que as pessoas com deficiência vem alertando sobre os perigos de sermos reduzidos ao quanto podemos podemos produzir para o sistema em que estamos enfiados. A individualidade de cada um, o valor, não deve ser medido pelo quanto de horas a pessoa pode trabalhar, que tipo de trabalho ela é capaz de exercer, ou ainda, o quanto de engajamento ela é capaz de gerar. Usando o exemplo das pessoas com deficiência, as que mais se destacam são justamente aquelas que mais se parecem com as pessoas sem deficiência em termos de corpo, sem deformidades, de necessidades, de menor nível de cuidado, que gozam do privilégio da semelhança, nas palavras de Fatine Oliveira, minha amiga e pesquisadora em deficiência. Quantas vezes você já escutou “tenho uma deficiência, mas nem pareço, posso fazer tudo”, como se aqueles que não podem fazer tudo fossem, de alguma forma, menos valiosas por isso?
Pessoas com deficiência, assim como Mirabel, podem passar boa parte da sua vida procurando uma forma de se encaixar num mundo que é extremamente como a Abuela Madrigal. Não só porque espera-se que cada um tenha seu papel definido pelo que é capaz de fazer, mas também pelo que é capaz de não sentir, enquanto indivíduo.
Dentro dessa lógica, que já dá sinais que está esgotando todas as pessoas, independente da deficiência, como esgotou os madrigal, se vive com o propósito de combinar com as expectativas. Se for ser mãe, por exemplo, que seja uma maternidade que se encaixe em modelos perfeitos impostos, que estão sempre se modificando, para nunca parecer suficiente. Se for para fazer algo tão essencial como se alimentar, tem que ser sempre com o que há de mais saudável e correto, mas sem fazer disso uma obsessão, que aí já não é “cool”. Se falamos de beleza tem que ser uma que pareça com um filtro do instagram, dos cílios postiços aos dentes super brancos, mas não muito a ponto de não parecer natural, ainda que não seja mesmo.
E é nessa busca por atender a um nível de excelência desconectado da individualidade de cada um que se vive sempre com a sensação de que só mudança é a saída, alcançar o milagre de ser como os outros. E esses outros que estarão desejando ser como outros, que estão desejando ser como outros e por aí vai.
Não sei bem onde encontrei coragem para viver fevereiro, só sei que fica mais confortável se movimentar sem estar preso a uma roupagem que me deram sem que eu pudesse escolher modelo e número. Para mim, pareceu mais fácil passar uns dias me permitindo viver o milagre de ser somente quem eu sou, mesmo, que isso não não configura pouca coisa. Tentando lembrar que isso não significa que eu esteja deixando a vida para lá, se não estiver sempre em função dessa metamorfose. A lagarta já vive muita coisa até chegar ao momento de quebrar o casulo e se tornar a borboleta esperada. Não pelos outros, mas porque é sua essência, sempre foi, ser borboleta.
#descrição: ilustração em tons de rosa de @daniellamartic onde se vê uma mulher gorda de costas, com o rosto aparecendo um pouco de perfil, cabelos cacheados e oculos escuros, em meio a um caminho circulado por plantas e postes. Há um balão de diálogo onde se lê em espanhol, tradução livre: "será que quero ser "a melhor versão de mim mesma por um desejo pessoa ou pelo bombardeio constante nas redes sobre a nova expectativa do dever ser?". Fim da descrição.