Newsletter @milamesmo 14ª Edição
Essa edição vem um tanto diferente das outras, porque acabou virando uma carta para uma grande amiga que faleceu no último dezembro: Ieska Tubaldini. Quem me acompanha, já viu Ieska aparecer oficialmente aqui na 8ª Edição (aquela que eu repeti sem querer). Mas extra-oficialmente, ela esteve em todas. Foi a grande responsável por eu ter começado e perserverado com isso aqui.
Espero que compreendam a necessidade que eu tive em fazer a news nesse formato e no final tem uma imagem muito bonita tirada por meu querido amigo Felipe.
Até a próxima, um 2022 mais gentil e próspero para a gente!
#descrição: Separador de texto com a ilustração do rosto de Mila em traços simples ao centro, com uma fileira de bolinhas no lado direito e outra fileira de bolinhas no lado esquerdo.
Ieskinha,
Não me parece certo escrever uma edição todinha da newsletter em formato de carta para você, mas eu já tentei outras formas e não saiu. Acho que meus leitores entenderão que é pegar ou largar, eu ainda não reuni os elementos necessários para dar continuidade à news sem a sua ajuda. Acho, ainda, que você mesmo diria “ai sereia, pelamor, você consegue”, mas seguraria minha mão, caso eu insistisse.
É que você estava presente desde que essa ideia era só um absurdo em meio ao desespero do início da pandemia. Nascida da necessidade de dar sentido às coisas que tomaram conta da gente. Algumas coisas arrumaram um sentido frouxo, outras desistiram de tentar. Já o desespero, meio que sentamos em cima, numa tentativa de esconder de nós mesmos. Você esteve nessa news, numa das minhas edições preferidas, e agora está de volta, do jeito mais errado possível, mas só porque eu ainda não me acostumei ao fato de que não falo com você todos os dias mais.
Eu estou de luto, como todo mundo que presta um pouco de atenção em mim sabe. Esse monstrengo que a gente até tenta abordar, conversar sobre, especialistas dividem em fases, vendem cursos sobre como acomodá-lo, em meio à lama. Quem está vivendo, porém, sabe que não dá para descrever, em meio a 10 coisas que se fala sobre o luto de perder alguém querido, talvez umas 3, no máximo, cheguem perto do que significa ser empurrada para dentro da boca desse monstro que engole a gente.
Imagine minha audácia, o post que estava pronto para ser enviado em dezembro, antes de você partir, ia falar sobre morte. Eu tinha assistido “Tick Tick…boom!” na netflix e minha cabeça ficou a mil pensando na angústia que nos toma para fazer as coisas antes de uma linha imaginária que traçamos como “tarde demais”. No filme, Jonathan Larson, na época garçom tentando ser dramaturgo, sonha em escrever sua primeira peça para Broadway enquanto vê o relógio se aproximar dos 30 anos. (Olha que delícia de música, Andrew Garfield interpretando Jonathan Larson, deixou todo mundo boquiaberto: https://www.youtube.com/watch?v=vJL6cz7zGDQ)
Eu sempre acho muito engraçado esses marcos temporais que as pessoas comentam, porque a nós duas foi dito, por conta da nossa amiotrofia, que viveríamos pouco. E isso mudou muito a forma como encaramos a vida, antes mesmo de nos darmos conta de que estávamos agindo sob a influência dessa ideia de que o tempo é escasso. Algumas vezes, esticamos a corda demais, para dar conta de abraçar tudo, em outras dizíamos “eu não sou obrigada a nada, a vida é muito curta”. Fazíamos isso, muitas vezes, de um jeito silencioso para quem está ao nosso redor, mas que, desde que nos encontramos, conseguíamos escutar telepaticamente uma da outra, sem precisar falar nada.
Até porque, fugimos de falar de morte, talvez por isso seja tão difícil quando chega. Pensar que existe um tempo finito em que esprememos todas as infinitas possibilidades de existir me exaspera, ao mesmo tempo que me consola. Como você sabe, fomos condicionadas a controlar tantos aspectos da vida para fazer cálculos simples do tipo “quem vai me colocar no banheiro daqui a pouco, se eu beber essa água agora?”, que não consigo lidar com impossibilidade de me preparar, às vezes. Então, por isso, me dá algum alívio não poder quantificar quanto tempo ainda me resta.
Veja, esse menino que falei, Jonathan, acha que o tempo para decidir seus rumos está acabando, por isso o nome da peça (que meu queridinho Lin-Manuel Miranda adaptou para filme), remetendo ao relógio. Não é só pelos 30 anos que chega, mas pela atmosfera de Nova York nos anos 80, sendo engolida por uma epidemia causada pelo vírus do HIV, recebendo pouca resposta dos órgãos responsáveis (Parece familiar, não?). Um tempo em que a urgência de viver se agiganta e, talvez pelo tamanho, fique mais difícil de se mexer com ela a tira-colo.
A parte da história de Jonathan contada no filme é a época que serve de material para “Rent”, musical que o alçou à fama, considerado um dos melhores da Broadway de todos os tempos. Porque nunca se sabe quando nossos atrasos, nossos percalços, que dão a sensação de estarmos vivendo nada, serão justamente a matéria-prima para o que vai nos colocar onde queríamos estar, em primeiro lugar.
Acontece que, sem fazer ideia que, agora sim, o tempo dele estava acabando, Jonathan morre, aos 35 anos, por conta de um aneurisma no dia da estreia de Rent, na Broadway. O tal do relógio, os marcos temporais, a época em que vivemos, o medo imposto a certos corpos, seja por serem mais frágeis ou por fazerem parte de uma minoria: tudo parece muito pouco diante do infinito de possibilidades, tanto de prosperar quanto de perecer.
Do mesmo jeito, Marília Mendonça, sobre a qual eu também quis falar na edição anterior que, aos 26 anos, no auge, querida, famosa, nos deixou. Não dava para ver daqui se Marília Mendonça tinha essa nossa pressa de viver ou se florescia diante da leveza de achar que tinha muito tempo. No fim das contas, o que se destaca cada vez que o nome dela aparece é o quanto ela marcou a vida das pessoas. Não só pela voz forte, pelo talento para música, a grande sacada de Marília era saber agregar. E nisso, Ieska, ela parecia com você.
Nada me consola mais durante esses tempos de ausência do que encontrar virtualmente cada um de seus amigos, que você me apresentou aos poucos, porque sempre foi tão agregadora, e ver sua marca neles. Você, de alguma forma, sabia que precisaríamos estar próximos de você, por isso se preocupou em deixar com cada um a sua marca. E desde então, decidi que esse é o novo mote da minha vida. Viver de forma a marcar a vida das pessoas próximas.
E de tudo que você me ensinou tão profundamente, sem querer, é que para marcar a vida das pessoas você precisa ser real consigo mesma. Entregando aquilo que considera ser a sua mais pura essência, não aquilo que o outro gostaria que você fosse. Sua essência era ser doce e afetuosa, ao mesmo tempo firme e perspicaz, para que ninguém confundisse amorosidade com fraqueza. E se existe algo que eu tiro dessa sua partida, da história de Jonathan Larson e da de Marília é que a dor da falta vem justamente pela forma como vocês foram extremamente eficientes em uma forte marca. Independentemente se sabiam que teriam pouco ou muito tempo para fazer isso acontecer.
Por enquanto, me despeço por aqui, esperando que tenha conseguido falar com meus leitores ao mesmo tempo que te homenageava. Ainda não estou pronta para fazer isso sem você, mas considero que dei o primeiro passo. Você não me perdoaria se eu abandonasse a news a essa altura.
Te amo infinitamente, minha amiga. Obrigada por segurar a minha mão, mais uma vez.
Aos que me leram até aqui, meu muito obrigada pela compreensão, luto é esse bicho feroz que não se pode ignorar, quando está urrando, enjaulado. Abaixo, uma foto do céu, tirada por Felipe, ele faz umas dessas fotos lindas e disponibiliza em seu instagram: @freelipi. Céu era uma coisa que Ieska gostava, especialmente de dia, mas noite é como está agora. .
#descrição: Foto do céu. Na esquerda, ele está azul escuro e bastante estrelado, com uma estrela brilhando mais forte, onde nuvens bem esparsas criam uma camada. Na parte de baixo da foto, árvores bem frondosas, especialmente à direita.